Folha de S. Paulo


Conflitos e crises humanitárias de 2017 atingem em cheio as crianças

Bombas, tiros, falta de comida, agressões. Guerras, conflitos e crises humanitárias que marcaram o ano de 2017 -na Síria, no Iraque, no Iêmen, na Venezuela, em Bangladesh, entre outros- tiveram a triste distinção de atingir um grande número de crianças.

Os pequenos são afetados não só diretamente pelas armas e bombardeios mas também pela desnutrição, pela falta de cuidados básicos de saúde e pela falta de escola e de rotina.

A desnutrição é uma das principais ameaças à saúde das crianças em situações de conflito. Com batalhas em curso, a habilidade dos adultos de trabalhar e de se movimentar fica prejudicada e as famílias ficam sem dinheiro; também começam a faltar suprimentos nas lojas.

Com pouca comida disponível, as crianças entram em estado de desnutrição mais rápido que os adultos. "Nos bebês, a situação é agravada pelo fato de que em algumas culturas, não é comum que as mulheres amamentem, e em situações de conflito costuma faltar leite artificial", diz Tatiana Chiarella, 33, enfermeira paulista que trabalhou em missões da ONG Médicos Sem Fronteiras no Iraque e no Iêmen.

Na Venezuela, a crise econômica também tem levado crianças à fome –investigação do jornal norte-americano "The New York Times" encontrou 2.800 casos de desnutrição infantil e 400 mortes de crianças por essa razão em nove hospitais públicos no país no último ano.

"Se as crianças estão desnutridas, seus sistemas imunológicos ficam mais suscetíveis a doenças como o cólera", diz Daphnee Cook, porta-voz da operação da ONG Save the Children em Cox's Bazaar, Bangladesh, onde se encontram cerca de 655 mil pessoas da etnia rohingya, que fugiram após perseguição violenta em Mianmar. Outras doenças como pneumonia e diarreia também atingem os pequenos com nutrição inadequada.

Surgem também as doenças transmissíveis como sarampo, meningite e difteria, ainda mais difíceis de controlar em locais como campos de refugiados, onde as pessoas se amontoam em condições precárias.

A falta de vacinação regular das crianças atrapalha –em locais como a Síria, ONGs fazem campanhas de vacinação contra doenças específicas, mas não conseguem manter as crianças com o calendário de vacinação atualizado e completo.

Nos campos de refugiados rohingya em Bangladesh, a Save the Children alerta para a possibilidade de um surto de difteria –até o meio de dezembro, 15 pessoas tinha morrido após contrair a doença. A organização começou em dezembro a vacinar crianças contra a doença nos campos de refugiados.

No Iêmen, uma epidemia de cólera já matou mais de 2.000 pessoas e contaminou 1 milhão, segundo o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. A difteria também voltou ao país, depois de 25 anos sem casos –35 pessoas já morreram e mais de 300 contraíram a doença.

MINAS E BALAS

Muitas vezes sem escola, interrompida devido aos conflitos, as crianças em situação de guerra também estão sujeitas a serem vítimas de balas perdidas e de acidentes ao brincar com minas terrestres e outros armamentos descartados.

"No Iraque, uma vez atendi cinco crianças da mesma família que brincavam juntas quando uma mina explodiu. Elas tiveram queimaduras e algumas perderam membros", conta Chiarella.

Em campos de refugiados, há pouco espaço para brincar; grupos de irmãos passeiam a esmo pelas ruas ou simplesmente ficam o tempo todo dentro de casa, diz Cook, da Save the Children. A organização montou 40 espaços próprios para os pequenos nos campos. "São locais onde elas podem brincar, cantar, dançar, ser crianças."

TRAUMAS

Sem conseguir verbalizar claramente os medos que têm e contar as situações de terror pelas quais passaram, crianças que passaram pela violência da guerra têm reações como tornar-se agressivas, voltar a fazer xixi na cama e não conseguir dormir, afirma Ionara Rabelo, 46, psicóloga e professora da Universidade Federal de Goiás que trabalhou com crianças refugiadas na Turquia e na Cisjordânia em missões da ONG Médicos Sem Fronteiras.

"As crianças revivem a violência nas brincadeiras, nos jogos, nos desenhos. Algumas passam a acreditar que todos os conflitos só podem ser resolvidos pela violência, pela morte", afirma ela.

"Quase todas as crianças com quem conversamos viram alguém da família ou da comunidade ser morto. Outros nos contaram sobre massacres ou estupros. Elas testemunharam coisas que nenhuma criança deveria ver e muitas estão profundamente traumatizadas", afirma Cook, da Save the Children, sobre os pequenos rohingya.

Outro custo psicológico para as crianças que deixaram os locais de conflito para trás é ter que reviver a guerra por meio das redes sociais, em áudios e vídeos recebidos pelos pais, enviados por parentes e amigos que ficaram. "Tivemos que pedir aos pais que parassem de mostrar esses vídeos às crianças, orientá-los para que a guerra não acompanhe a família na fuga", diz Rabelo.

Conflitos longos, como o da Síria, que já dura mais de seis anos, fazem com que já exista um grupo de pequenos cidadãos que nunca conheceu uma realidade de paz.

"Há crianças que nunca foram à escola, que não têm cotidiano, não têm rotina", diz Rabelo. "Vejo crianças que não sabem o que é brincar na rua sem ver armas, sem ver tanques. Elas nasceram no conflito e nunca conheceram nada diferente", acrescenta Chiarella.


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