Folha de S. Paulo


Região curda retrocede após tentativa de independência

Diogo Bercito/Folhapress
cidade disputada de Kirkuk. líderes da tribo Shamari, em Kirkuk, deliberam sobre o futuro do vilarejo destruído pelo Exército curdo. Foto: Diogo Bercito/Folhapress ****ESPECIAL FOLHA**** DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM
Líderes da tribo Shamari, em Kirkuk, deliberam sobre o futuro do vilarejo destruído pelo Exército curdo

O aeroporto de Erbil, no norte do Iraque, recebe os visitantes com uma faixa de apoio à independência da população curda, motivo do plebiscito feito em 25 de setembro, com 73% de participação e quase 93% de votos a favor.

O cartaz, já desbotado, rapidamente se tornou obsoleto: o projeto de ter um Estado próprio ruiu nos últimos meses, com a dura resposta vinda da capital iraquiana, Bagdá —incluindo incursões militares em 16 de outubro.

O próprio aeroporto é um símbolo do fracasso do secessionismo. Voos internacionais foram proibidos pelo governo central e agora, para chegar a Erbil, é necessário passar por Bagdá, único destino que aparece no painel de chegadas e partidas. Antes era possível ir ao território curdo sem o visto iraquiano.

A medida, somada ao bloqueio de rodovias, pune não apenas os políticos responsáveis pelo plebiscito, mas toda a população de 8,3 milhões pessoas que vive na região autônomo. Dos eleitores, 73% votaram na consulta.

Se os líderes curdos tinham algum otimismo quanto à sua independência —afinal, seu Exército regional esteve na linha de frente na guerra contra a facção terrorista Estado Islâmico—, agora já não falam nisso. Recolhendo os cacos da pretensão estilhaçada, pedem ao menos voltar à autonomia que tinham antes.

À Folha o ministro curdo das Relações Exteriores, Falah Bakir, disse que os planos de curto prazo são estabelecer um cessar-fogo com Bagdá e retomar o controle de suas fronteiras. No médio prazo, o projeto é reerguer o governo regional, falido. A independência, que parecia próxima, agora é um tema para o futuro.

"Sabíamos que o referendo não era uma estratégia sem riscos", afirma Bakir. "Mas não esperávamos que toda a comunidade internacional fosse permitir que Bagdá usasse a força contra nós."

SOBERANIA

A república iraquiana foi estabelecida em 1952 como um país de maioria árabe, incluindo dentro de suas fronteiras uma enorme minoria curda —um grupo étnico com língua e história próprios, também presente na Turquia e no Irã. "Desde o início nunca sentimos que tínhamos direitos iguais", diz Bakir.

Movimentos separatistas, que desceram das montanhas e se fortaleceram em Erbil, foram esmagados por Bagdá. A ditadura de Saddam Hussein (1979-2003), um árabe muçulmano sunita, usou armas químicas contra os curdos.

A região é hoje governada por uma administração semiautônoma conhecida pela sigla KRG (Governo Regional Curdo, na sigla em inglês). Curdos em tese podem legislar sobre suas questões regionais e deixam a agenda internacional para Bagdá.

Mas, nessa divisão de poderes, ambos os governos discordam sobre um ponto fundamental: quem tem o direito de exportar o petróleo produzido na região. Se fosse um país independente, o Curdistão iraquiano teria a 10a maior reserva do mundo —e, em desafio a Bagdá, exporta esse produto por conta própria.

O projeto de secessão, frustrado durante décadas, pareceu de repente tangível quando a organização terrorista Estado Islâmico expulsou o Exército iraquiano de porções do norte em 2014. O Exército curdo, conhecido como Peshmerga, passou a ser uma das principais forças no combate aos militantes.

Foi nesse contexto que curdos tomaram Kirkuk, onde estão algumas das principais reservas de petróleo do Iraque. Essa conturbada cidade multiétnica é reivindicada como a capital histórica curda.

Seduzido pelas vitórias e pela atenção do mundo colocada sobre suas tropas, o então presidente curdo, Masud Barzani, convocou o referendo separatista de 25 de setembro a despeito dos avisos de seus principais aliados, incluindo os EUA, e também da Turquia e do Irã. Ele mais tarde renunciou.

"Achávamos que, depois de derrotar o Estado Islâmico, nossa relação com Bagdá fosse ser diferente. Que as nossas diferenças fossem ser resolvidas", afirma Bakir. "Mas eles pensaram que fosse um blefe."

Olhando para trás, a aposta de realizar o referendo não se pagou. Quando Bagdá retomou as áreas ocupadas desde 2014, incluindo Kirkuk, o governo curdo perdeu 40% de seu território.
O bloqueio dos aeroportos debilitou a economia e um terço dos mercados fechou, segundo a imprensa local.

Enfurecidos com o desastre econômico, e com servidores públicos sem receber salário, curdos foram às ruas neste mês mês protestar contra seu próprio governo.

A situação tem se agravado rapidamente.

"Não era o momento certo para fazermos um referendo, e sabíamos disso", diz Aso Mamend, um líder do partido PUK (União Patriótica do Curdistão), que em Kirkuk se opôs aos planos do governo regional.

"A guerra contra o Estado Islâmico ainda não acabou, e dissemos isso ao ex-presidente Barzani", afirma. Barzani representa o KDP (Partido Democrático do Curdistão). "O que temos que fazer agora é negociar a estabilidade dentro de um marco constitucional."

Mas outros políticos ouvidos pela Folha relutam em reconhecer que a consulta independentista foi feita em um momento ruim, como insistem Bagdá e seus aliados internacionais.

"Quando é o momento certo?", pergunta Vahel Ali, assessor do ex-presidente Barzani. "Ninguém nos ofereceu alternativa", diz.

"Todo povo diferente étnica, cultural e historicamente tem o direito de ser um Estado, como a Catalunha e a Escócia", afirma, aludindo a outras tentativas de secessão. "Mas, apesar de reconhecer isso, a lei internacional não oferece nenhum mecanismo claro para a independência."


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