Folha de S. Paulo


Opinião

Como seria uma guerra nuclear contra a Coreia do Norte

KCNA - 29.nov.2017/AFP
Foto divulgada pelo regime norte-coreano mostra lançamento do míssil Hwasong-15 em novembro
Foto divulgada pelo regime norte-coreano mostra lançamento do míssil Hwasong-15 em novembro

Ninguém quer travar uma guerra nuclear. Nem na Coreia do Norte, nem na Coreia do Sul, nem nos Estados Unidos. Mas os líderes desses três países sabem que tal guerra pode acontecer —se não por opção, por engano.

O mundo sobreviveu a momentos de tensão na península da Coreia em 1969, 1994 e 2010. A cada vez, as partes chegaram às raias do perigo, espiaram para dentro do abismo e recuaram. Mas e se uma delas tropeçasse, escorregasse sobre a borda e, tentando sobreviver, arrastasse as demais para a escuridão lá embaixo?

É assim que poderia acontecer, com base em declarações públicas, relatórios de inteligência e mapas de zonas de explosão.

MARÇO DE 2019

Desta vez os norte-coreanos foram longe demais.

Há anos a Coreia do Norte encenava provocações –e a Coreia do Sul convivia com elas. As duas chegaram perto da guerra antes: em 2010, um torpedo norte-coreano detonou pouco abaixo de uma corveta da Marinha sul-coreana, partindo o navio em dois e causando a morte de 46 marinheiros.

Mais tarde no mesmo ano, quando a artilharia norte-coreana arrasou uma ilha sul-coreana e matou mais quatro pessoas, o presidente sul-coreano, Lee Myung-bak, teria ordenado que aviões realizassem um contra-ataque profundo na Coreia do Norte, mas os militares americanos o contiveram.

Desta vez foi diferente. Ninguém pensou que o presidente Moon Jae-in, um progressista conhecido por suas tentativas de envolver a Coreia do Norte, desejaria ver sangue. Mas ninguém avaliou quão rapidamente a violência acidental poderia assumir sua própria lógica urgente.

No final de fevereiro, os EUA estavam movimentando forças militares na região para um exercício conjunto anual com o Sul, chamado de "Filhote de Águia". A Coreia do Sul tinha cancelado o exercício em 2018 para não aborrecer o Norte antes dos Jogos Olímpicos de Inverno em Pyeongchang. Para compensar o ano perdido, o exercício em 2019 seria maior que nunca.

Quando um jato comercial sul-coreano entrou no espaço aéreo da Coreia do Norte, uma equipe de defesa do Norte, já sobressaltada e prevendo as manobras aliadas no mar do Japão, o confundiram com um bombardeiro americano. A tripulação disparou um míssil terra-ar e derrubou o avião no mar, matando as 250 pessoas a bordo.

O público sul-coreano ficou indignado. Dentro de algumas horas, Moon ordenou que unidades de mísseis sul-coreanas atacassem a bateria antiaérea, assim como alvos da liderança selecionados em toda a Coreia do Norte.

O ataque de míssil limitado de Moon poderia ter bastado para iniciar a guerra nuclear em 2019. Autoridades sul-coreanas e americanas ainda estão trocando acusações. Mas os membros sobreviventes do governo Moon insistem que as coisas teriam ido bem se o presidente Donald Trump não pegasse seu smartphone: "O PEQUENO HOMEM-FOGUETE NÃO FICARÁ MUITO TEMPO POR AÍ!"

Foi uma ameaça inútil no Twitter —Trump ainda não tinha sido informado sobre o ataque de míssil, e ele ainda não havia sido comentado no "Fox & Friends". Mas como Kim Jong-un saberia disso?

Para ele, com as forças dos EUA à espreita nas proximidades e os mísseis sul-coreanos atingindo seus locais militares, o significado do tuíte de Trump parecia claro: Trump estava usando a derrubada como pretexto para a invasão que ele desejava o tempo todo.

RISCO AO REGIME

O avô de Kim, Kim Il-sung, tinha iniciado o programa de armas nucleares da Coreia do Norte décadas atrás. Ele havia concluído, segundo desertores que depuseram no Congresso dos EUA, que Saddam Hussein tinha cometido um erro terrível em 1991 ao relaxar e observar os americanos formarem uma força de invasão maciça.

Seu filho e seu neto tinham visto Hussein ser tirado de um buraco de aranha e mais tarde enforcado após a invasão do Iraque pelos EUA em 2003. Eles tinham visto vídeos da horrível morte de Muamar Gaddafi na Líbia, nas mãos de rebeldes apoiados pelo poderio aéreo dos EUA.

Cada fato o convenceu de que, assim que os EUA agissem para tirar a família Kim do poder, ele ordenaria que a Força Estratégica de Foguetes do Exército Popular da Coreia disparasse mísseis de curto e médio alcance com carga nuclear contra as forças americanas em toda a Coreia do Sul e o Japão.

Kim Jong-un esperava que o ataque repentino causasse dezenas de milhares de mortes, inutilizando a força de invasão e surpreendendo o público americano avesso a baixas. Era uma aposta desesperada, mas não fazer nada significava a morte certa.

Assim, diante do que ele acreditava ser um ataque militar maciço dos EUA, Kim deu a ordem. A linha da história serpenteia nas voltas do destino, como se o motorista do arquiduque Francisco Ferdinando [cujo assassinato foi o estopim para a Primeira Guerra Mundial] errasse o caminho.

Durante anos, as unidades de mísseis norte-coreanas tinham ensaiado esse mesmo cenário, levando mísseis Scud e Nodong ao campo à noite para praticar disparos contra forças americanas na Coreia do Sul e no Japão —usando armas nucleares para arrasar as tropas inimigas enquanto dormiam em seus quartéis ou ao chegarem aos portos e aeroportos.

Desta vez não era um exercício. Em 2017, a comunidade de inteligência tinha avaliado que a Coreia do Norte possuía até 60 ogivas nucleares e estava acrescentando cerca de 12 por ano. Esse número era um pouco alto: Kim não tinha 72 armas nucleares. Mas tinha 48.

As Forças Estratégicas de Foguetes usaram 36 deles na primeira onda. Esses mísseis eram principalmente Scuds de alcance estendido e Rodongs de alcance maior. Os lançamentos pareceram exatamente os exercícios militares que os norte-coreanos tinham divulgado ano após ano.

Os alvos na Coreia do Sul e no Japão se situavam de modo geral em áreas urbanas. A guarnição Yongsan, por exemplo, ficava no centro de Seul. O porto de Pusan, outro alvo importante, ficava na segunda maior cidade da Coreia do Sul.

No Japão, muitas bases americanas se concentravam na área de Tóquio —as Bases Aéreas de Yokota e Atsugi, a Base Naval de Yokosuka. A Estação Aérea Iwakuni dos Fuzileiros Navais, a cerca de 35 km de Hiroshima, também foi visada.

Alguns desses mísseis se romperam durante o voo, deixando de atingir os alvos. As autoridades americanas mais tarde afirmariam que foram interceptados por defesas antimísseis americanas e sul-coreanas —embora a maioria dos especialistas negue isso. Os observadores há muito advertiam que a eficácia da defesa de mísseis estava sendo exagerada.

Trump tinha dito a repórteres em 2017 que o Japão e a Coreia do Sul podiam "facilmente derrubar (mísseis norte-coreanos) do céu, assim como derrubamos algo do céu da Arábia Saudita outro dia, como vocês viram".

Na verdade, as autoridades sauditas e americanas sabiam que a defesa tinha falhado em interceptar aquela ogiva, que por pouco não atingiu um aeroporto.

FOGO NUCLEAR

Muitos mísseis norte-coreanos erraram o alvo na Coreia do Sul e no Japão por poucos quilômetros. Mas esses eram equipamentos de fissão, com cargas semelhantes às das armas nucleares que destruíram Hiroshima e Nagasaki, e as bombas que caíram fora dos alvos ainda infligiram enormes danos a áreas urbanas.

As explosões arrasaram edifícios e foram seguidas de tempestades de fogo que consumiram grandes áreas de Seul, Pusan e Tóquio.

Durante pelo menos algumas horas, os norte-coreanos puderam acompanhar o ataque nuclear com ondas de mísseis convencionais e artilharia de longo alcance.

As pessoas comentariam o heroísmo dos bombeiros sobreviventes tentando desesperadamente extinguir as chamas enquanto mísseis, alguns dotados de armas químicas, continuavam chovendo sobre eles.

O sofrimento continuaria durante muitos dias, enquanto os sobreviventes, afetados por doenças agudas da radiação, abriam caminho entre os destroços para morrer em casa. Como havia sido em Hiroshima e Nagasaki em 1945, a infraestrutura de cuidados médicos estava sobrecarregada.

A Coreia do Norte disparou um pequeno número de mísseis da nova geração Hwasong-12, também com armas nucleares, contra Okinawa e Guam. Mas nessa distância os mísseis são bastante imprecisos —somente a metade deles cai a poucos quilômetros de seus alvos. Todos os mísseis destinados a Okinawa e Guam caíram no oceano.

Algumas pessoas foram mortas no pânico e em acidentes de carro depois dos clarões cegantes das explosões nucleares atmosféricas, mas as operações militares dos EUA fora da Base Aérea de Kadena e de Andersen continuaram.

Naquela primeira noite, Kim não usou armas nucleares contra o território dos EUA. Sua estratégia foi conter a invasão e chocar Trump. Ele sabia que tinha 12 mísseis de longo alcance na reserva, mísseis balísticos intercontinentais maciços como o Hwasong-15 que a Coreia do Norte começou a testar no final de 2017 e que poderiam carregar as poderosas novas armas termonucleares do Norte.

Se Trump continuasse a ameaçar o poder de Kim, ou se este e sua família morressem nas mãos dos americanos, Kim estava decidido a usar esses mísseis para atacar o território dos EUA. Ele esperava que a ameaça fizesse Trump tomar sentido.

Mas Kim havia interpretado mal o humor americano. Com campos de pouso em Okinawa e Guam ainda funcionando, e bombardeiros de longo alcance perfeitamente capazes de atacar a Coreia do Norte partindo de bases domésticas, os EUA montaram uma enorme operação aérea para matar Kim e destruir quaisquer mísseis balísticos restantes que fossem encontrados.

Para surpresa de muitos observadores, essa campanha era uma campanha aérea convencional —as autoridades americanas concluíram que o uso de armas nucleares solaparia a mensagem de que os EUA pretendiam libertar a população da Coreia do Norte.

É claro, Kim não sabia disso: os ataques aéreos dos EUA o deixaram quase completamente isolado da comunicação com suas unidades militares, e na neblina da guerra os rumores sobre ataques nucleares americanos se disseminaram.

MÍSSEIS AOS EUA

Então Kim deu a ordem para usarem os mísseis nucleares restantes Hwasong-14 e Hwasong-15 contra alvos nos EUA —dois de cada um contra as bases navais em Pearl Harbor e San Diego, juntamente com alvos importantes em Nova York, Washington e —em um toque pessoal— um único míssil destinado a Mar-a-Lago em Palm Beach, na Flórida, elevando o total a 12.

Os alvos eram muito parecidos com os mostrados em um grande mapa dos EUA erguido no gabinete de Kim, na frente do qual ele tinha autorizado o desenvolvimento de um plano de ataque nuclear em 2013.

Os EUA, é claro, tinham um sistema de defesa de mísseis no Alasca, além de um pequeno número de interceptores na Califórnia. Mas o sistema fora dimensionado para lidar com apenas 11 mísseis. Assim, dois terços dos mísseis norte-coreanos atingiram seus alvos.

A Agência de Defesa de Mísseis dos EUA diria mais tarde que esse foi um sinal de que o sistema funcionou direito, derrubando cerca de um terço dos mísseis —mas especialistas afirmariam que o baixo índice de interceptação resultou de problemas que o "Los Angeles Times" tinha relatado em 2017.

Os veículos de morte exoatmosférica (EKV na sigla em inglês) tinham aceleradores defeituosos, segundo analistas, tornando improvável que interceptassem com sucesso qualquer ogiva em aproximação. Parecia mais provável, disseram os especialistas, que quatro dos mísseis tivessem simplesmente se rompido ao reentrar na atmosfera terrestre.

As sete ogivas nucleares restantes pousaram nos EUA. Esses mísseis não eram mais precisos que os outros —mas com ogivas de 200 kilotons, dez vezes o poder da bomba que destruiu Hiroshima, perto era o suficiente na maioria dos casos. Pearl Harbor recebeu um golpe direto com uma única arma, enquanto San Diego teve sorte: os dois mísseis dirigidos para lá não conseguiram chegar.

Uma ogiva atingiu Manhattan —que a mídia estatal da Coreia do Norte havia mencionado especificamente como alvo de seus mísseis de longo alcance—, enquanto os dois mísseis apontados para Washington atingiram os subúrbios no norte da Virgínia.

Trump, em um bunker improvisado no porão de Mar-a-Lago, sentiu a terra tremer quando a última ogiva pousou na cidade de Jupiter, na Flórida, a cerca de 35 km de distância. Os outros dois mísseis caíram muito fora do rumo, detonando no mar ou em áreas rurais pouco populosas.

Nas horas seguintes, Trump foi informado de que ataques aéreos aliados haviam matado Kim. Isso foi um engano, mas o regime da Coreia do Norte tinha caído. Mais tarde, quando forças americanas e sul-coreanas pentearam os subúrbios de Pyongyang, encontraram Kim em um bunker, morto por sua própria mão.

O ataque direto a Manhattan matou mais de 1 milhão de pessoas. Outras 300 mil morreram perto de Washington. Os ataques a Jupiter e Pearl Harbor mataram de 20 mil a 30 mil pessoas cada um. Essas eram apenas estimativas; a escala da destruição desafiava a capacidade das autoridades de contar os mortos. Centenas de milhares morreram na Coreia do Sul e no Japão pela combinação de explosões e incêndios.

Levaria anos para que o governo americano pudesse oferecer um cômputo das baixas. O Pentágono quase não se esforçaria para calcular o enorme número de civis mortos na Coreia do Norte pela campanha aérea convencional maciça. Mas no final as autoridades concluíram que quase 2 milhões de americanos, sul-coreanos e japoneses haviam morrido na guerra nuclear completamente evitável de 2019.

JEFFREY LEWIS é professor no Instituto de Estudos Internacionais Middlebury, em Monterey, na Califórnia.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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