Folha de S. Paulo


Estados dos EUA avaliam opioides como método de execução

O analgésico sintético fentanil tem sido a força motriz por trás da epidemia de opioides nos EUA, que matou dezenas de milhares de americanos por overdose no ano passado. Agora dois Estados querem usar as poderosas propriedades da droga com um novo objetivo: executar prisioneiros que estão no corredor da morte.

Enquanto Nevada e Nebraska pressionam pelas primeiras execuções no país com a utilização de fentanil, médicos e adversários da pena de morte combatem esses planos. Eles advertem que o uso sem testes da droga poderá levar a execuções dolorosas e imperfeitas, comparando o uso dessa e de outras novas drogas propostas para injeções letais.

Os Estados são cada vez mais pressionados a encontrar formas de aplicar a pena de morte devido a problemas para obter as drogas usadas há muitos anos, basicamente porque as companhias farmacêuticas estão se recusando a fornecer essas drogas para execuções.

A situação levou Estados como Flórida, Ohio e Oklahoma a recorrerem a novas combinações de drogas. Mississipi legalizou o gás nitrogênio nesta primavera como método de apoio —o que nenhum outro Estado ou país tentou. As autoridades ainda têm de dizer se seria aplicado em uma câmara de gás ou por meio de uma máscara.

Outros Estados aprovaram leis que autorizam o recurso a antigos métodos, como o pelotão de fuzilamento e a cadeira elétrica.

"Estamos em uma nova era", disse Deborah Denno, professora de direito na Universidade Fordham. "Os Estados já passaram por todas as drogas mais próximas das originais para a injeção letal. E quanto mais experimentam mais eles são obrigados a usar novas drogas sobre as quais sabemos menos em termos de sua eficácia em uma execução."

Os defensores da pena capital culpam os críticos pela crise, que surge em meio a um acentuado declínio do número de execuções e do apoio público à pena capital. No final de novembro, 23 presos tinham sido mortos em 2017 —menos que em qualquer ano, exceto um, desde 1991. Dezenove Estados não têm mais a pena capital, sendo que um terço deles a proibiu na última década.

"Se os adversários da pena de morte estivessem realmente preocupados com o sofrimento dos condenados, eles ajudariam a retomar o fornecimento", disse Kent Scheidegger, da Fundação Legal de Justiça Criminal, que defende os direitos das vítimas de crimes. Os adversários "causaram o problema em que estamos hoje ao forçar as companhias farmacêuticas a cortar o fornecimento dessas drogas. É por isso que os Estados estão recorrendo a opções não tão boas".

Autoridades prisionais em Nevada e Nebraska não quiseram responder a perguntas sobre por que decidiram usar fentanil nas próximas execuções, o que poderá ocorrer no início de 2018. Muitos Estados envolvem seus procedimentos em segredo para tentar reduzir as contestações legais.

Mas o fentanil oferece várias vantagens. A mais óbvia é sua potência. A droga sintética é 50 vezes mais poderosa que a heroína e até 100 vezes mais forte que a morfina.

"Há uma ironia cruel no fato de que ao mesmo tempo que os governos estaduais tentam descobrir como impedir que tanta gente morra por causa de opioides agora eles queiram usá-los para deliberadamente matar alguém", disse Austin Sarat, professor de direito no Amherst College que estuda a pena de morte há mais de 40 anos.

Outra vantagem do fentanil: é fácil de obter. Embora a droga tenha disparado no noticiário por causa da crise dos opioides, os médicos frequentemente a usam para anestesiar pacientes em grandes cirurgias ou para tratar dores severas em pacientes de câncer avançado.

As autoridades de Nevada dizem que não tiveram dificuldade para comprar fentanil.

"Nós simplesmente encomendamos através de nosso distribuidor farmacêutico, como qualquer outro medicamentos que compramos, e foi entregue", disse Brooke Keast, uma porta-voz do Departamento Correcional de Nevada, em um e-mail. "Nada fora do comum."

O Estado, que executou uma pessoa pela última vez em 2006, tinha planejado para novembro sua primeira execução com o uso de fentanil. O detento, Scott Dozier, 47 anos, foi condenado por matar um homem em um hotel em Las Vegas, cortá-lo em pedaços e roubar seu dinheiro.

Segundo documentos obtidos pelo "Washington Post", o protocolo de Nevada pede que Dozier primeiro receba diazepam —um sedativo mais conhecido como Valium— e depois fentanil para fazê-lo perder a consciência.

Grandes doses de ambos fariam a pessoa parar de respirar, segundo três anestesiologistas entrevistados para esta reportagem.

Mas Nevada também pretende injetar em Dozier uma terceira droga, cisatracurium, para paralisar seus músculos —medida que segundo especialistas médicos torna o procedimento mais arriscado.

"Se as primeiras duas drogas não funcionarem como planejado ou se forem administradas incorretamente, o que já aconteceu em muitos casos... a pessoa estaria desperta e consciente, desesperada para respirar e aterrorizada, mas incapaz de se mover", disse Mark Heath, professor de anestesiologia na Universidade Columbia. "Seria uma maneira agônica de morrer, mas as pessoas testemunhando não perceberiam nada errado porque o condenado não poderia se mover."

John DiMuro, que ajudou a criar o protocolo de execução por fentanil quando era a principal autoridade médica do Estado, disse que o baseou em procedimentos comuns em cirurgia de coração aberto. Ele incluiu o cisatracurium por causa de temores de que o Valium e fentanil podem não interromper totalmente a respiração do detento, segundo ele. "O paralisante apressa e garante a morte. Seria menos humano sem ele."

Um juiz adiou a execução de Dozier no mês passado por preocupações sobre o paralisante, e o caso aguarda revisão pela Suprema Corte de Nevada. Enquanto isso, Nebraska prevê uma execução com a ajuda de fentanil em janeiro. Jose Sandoval, líder de um assalto a banco em que cinco pessoas foram mortas, seria a primeira pessoa executada no Estado desde 1997.

Sandoval receberia uma injeção das mesmas três drogas propostas em Nevada, mais cloreto de potássio para parar seu coração.

Mesmo em concentrações muito menores, o cloreto de potássio intravenoso muitas vezes causa uma sensação de queimação, segundo Heath. "Por isso, se a pessoa não estiver sedada adequadamente uma dose de alta concentração daria a impressão de que alguém estivesse passando uma tocha pelo seu braço e queimando-o vivo", disse ele.

Fentanil é apenas a última em uma longa lista de abordagens que foram consideradas para a pena capital nos EUA. Com cada uma, as coisas muitas vezes deram errado.

Quando o enforcamento perdeu a preferência no século 19 —por causa de casos abortados e das multidões embriagadas que atraía—, os Estados recorreram à eletrocussão. A primeira, em 1890, foi um desastre macabro: os espectadores perceberam que o prisioneiro continuava respirando depois que a eletricidade foi desligada, e as autoridades prisionais tiveram de aplicá-la novamente ao homem.

As câmaras de gás foram igualmente vendidas como uma solução científica moderna. Mas uma das últimas execuções nos EUA por gás cianídrico, em 1992, correu tão mal que deixou as testemunhas chorando, e o diretor da prisão ameaçou renunciar em vez de tentar mais uma.

A injeção letal, desenvolvida em Oklahoma em 1977, deveria solucionar esses problemas. Ela provocou preocupações desde o início, especialmente por causa da droga paralisante usada. Mesmo assim, a injeção de três drogas logo se tornou o método predominante de execução no país.

Nos últimos anos, conforme o acesso a essas drogas secou, os Estados experimentaram outras. Antes do interesse pelo fentanil, muitos Estados testaram um sedativo chamado midazolam —levando ao que a juíza Sonia Sotomayor, da Suprema Corte, chamou de "mortes horríveis".

Dennis McGuire, que estuprou e matou uma mulher grávida em Ohio, tornou-se o primeiro detento em quem o novo protocolo foi testado. Pouco depois do início da execução, em 2014, seu corpo se contorceu sobre a mesa enquanto ele tentava respirar e fazia ruídos como se estivesse se afogando, segundo testemunhas.

No mesmo ano, Oklahoma usou o midazolam em um detento condenado por sequestrar e matar uma adolescente; as autoridades cancelaram a execução depois que Clayton Lockett deu pontapés, contorceu-se e fez caretas durante 20 minutos, mas morreu pouco depois. Três meses mais tarde, o Arizona usou midazolam em Joseph Wood 3º, que foi condenado por matar sua ex-namorada e o pai dela. As autoridades lhe aplicaram mais de uma dúzia de injeções enquanto ele lutava, durante quase duas horas.

Assim como autoridades de outros Estados, as do Arizona afirmaram que o prisioneiro não sofreu e que o procedimento não foi um fracasso. Mais tarde, disseram que não usarão mais midazolam em execuções.

Joel Zivot, um professor de anestesiologia e cirurgia na Universidade Emory, chamou a abordagem dos Estados de ridícula. "Não há base médica ou científica para nada disso", afirmou ele. "É apenas uma série de tentativas: obter certas drogas, experimentá-las em prisioneiros e ver se e como eles morrem."

A má publicidade e os constantes problemas no fornecimento de drogas levaram alguns Estados onde a pena capital ainda é legal a procurar opções além da injeção letal. Utilizar gás nitrogênio resolveria pelo menos um problema.

"O nitrogênio está literalmente no ar que respiramos —você não pode cortar o suprimento dele a ninguém", disse Scheidegger, que apoia fortemente a ideia.

Além do Mississipi, Oklahoma autorizou o gás nitrogênio como apoio à injeção letal. Autoridades correcionais e legisladores da Louisiana e do Alabama disseram que esperam fazer o mesmo.

Mas os críticos notam que quase não há pesquisa científica a sugerir que o nitrogênio seria mais humano.

Zivot está entre os céticos de que o nitrogênio funcionaria como se espera.
"Há uma diferença entre a hipoxia [falta de oxigênio] acidental, como os pilotos que desmaiam, e alguém que sabe que você está tentando matá-lo e luta contra isso", disse. "Você já viu alguém lutando para respirar? Eles soluçam até o fim. É terrível."

Dozier, o detento que Nevada pretende executar em breve com fentanil, disse que prefere ser morto por um pelotão de fuzilamento a qualquer outro método. Em mais de uma dúzia de entrevistas, especialistas dos dois lados da questão expressaram opiniões semelhantes.

De todas as tecnologias letais que os seres humanos inventaram, a arma de fogo perdurou como uma das maneiras mais eficientes de matar, disse Denno, que estuda a pena de morte há 25 anos.

"O motivo pelo qual continuamos procurando outra coisa", disse ela, "é que não é realmente para o prisioneiro. É para as pessoas que têm de assistir à morte. Não queremos nos sentir nauseados ou desconfortáveis. Não queremos que as execuções pareçam o que elas realmente são: matar uma pessoa."

Colaborou Julie Tate, do "Washington Post"

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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