Folha de S. Paulo


Prisões norte-coreanas são terríveis como nazistas, diz sobrevivente de Auschwitz

As prisões políticas da Coreia do Norte são tão terríveis quanto os campos de concentração nazistas do Holocausto, e possivelmente até piores, concluiu um juiz renomado, sobrevivente de Auschwitz, depois de ouvir depoimentos de ex-prisioneiros e guardas norte-coreanos.

Thomas Buergenthal, que já trabalhou para a Corte Internacional de Justiça, é um de três juristas que concluíram que o ditador norte-coreano, Kim Jong-un, deve ser levado a julgamento por crimes contra a humanidade devido ao modo como seu regime utiliza prisões políticas brutais para controlar a população.

KCNA - 11.dez.2017/Reuters
Membros da cúpula do regime norte-coreano se reúnem em convenção da indústria militar em Pyongyang
Membros da cúpula do regime norte-coreano se reúnem em convenção da indústria militar em Pyongyang

"Acredito que as condições nos campos de prisioneiros da Coreia do Norte sejam tão terríveis ou ainda piores do que eu vi e vivi em minha juventude nos campos nazistas e em minha longa carreira profissional na área dos direitos humanos", disse Buergenthal, que ficou detido em Auschwitz e Sachsenhausen quando era criança, além de ter estado no gueto de Kielce, na Polônia.

Buergenthal fez parte de um comitê que incluiu também a juíza sul-africana Navi Pillay, que presidiu o Tribunal Penal Internacional para Ruanda e mais tarde foi alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e o juiz americano Mark Harmon, que trabalhou em julgamentos por crimes de guerra de acusados da antiga Iugoslávia e do Camboja.

Os três juízes ouviram depoimentos de ex-prisioneiros, carcereiros e especialistas, como parte de um inquérito aberto pela International Bar Association (ordem internacional de advogados).

O relatório resultante, que será divulgado nesta terça-feira (12), concluiu que existem bases amplas para acusar o regime de Kim de dez dos 11 crimes de guerra internacionalmente reconhecidos —incluindo assassinato, escravidão, tortura e violência sexual— devido ao uso que ele faz de campos de prisioneiros políticos.

"Não existe uma situação comparável em lugar algum do mundo, passado ou presente", disse Pillay. "Trata-se realmente de uma atrocidade no nível máximo, em que a população inteira está sujeita a intimidação."

Três gerações da família Kim governaram e governam a Coreia do Norte como Estado totalitário definido por um culto amplo à personalidade do governante, dentro do qual os líderes são tratados como semideuses.

Qualquer pessoa que questione os líderes ou o sistema pode ser jogada numa colônia penal de trabalho forçado, frequentemente pelo resto de sua vida e em muitos casos com três gerações de suas famílias, para eliminar a "semente" dos "inimigos do Estado".

Especialistas estimam que até 130 mil norte-coreanos estejam detidos em quatro campos enormes, onde são forçados a fazer trabalhos pesados, com frequência em minas, e recebem poucos alimentos, roupas ou aquecimento.

O regime também opera campos de "reeducação" para os culpados de delitos menores. Estes são igualmente brutais, mas os prisioneiros detidos neles geralmente cumprem penas por prazos definidos.

INVESTIGAÇÃO

As amplas e extensas violações dos direitos humanos cometidas pela Coreia do Norte foram documentados num relatório de referência de uma Comissão de Inquérito das Nações Unidas em 2014. A partir disso, a International Bar Association decidiu abrir um inquérito específico sobre os campos de prisioneiros políticos.

Os três juízes ouviram depoimentos e leram declarações juramentadas de ex-prisioneiros e guardas de prisões na Coreia do Norte cobrindo o período de 1970 a 2006.

A comissão ouviu relatos sobre prisioneiros em estado de inanição que foram executados depois de ser flagrados procurando comida no lixo e sobre a morte de inúmeros prisioneiros em decorrência de desnutrição e excesso de trabalho. Alguns deles eram obrigados a trabalhar 20 horas por dia nas minas.

Os juízes também ouviram relatos sobre estupros e abortos forçados das gravidezes resultantes, em alguns casos levando à morte das mulheres.

Um sobrevivente de um campo de prisioneiros, um médico que foi capturado quando tentava fugir para a China, contou que foi pendurado nu de cabeça para baixo, espancado, torturado com água e fogo e teve água com pimenta derramada em sua boca e nariz.

O depoimento em primeira mão mais recente que os juízes ouviram foi de 2006, mas a comissão recebeu uma declaração juramentada de Thae Yong-ho, diplomata norte-coreano sênior que escapou da embaixada de seu país em Londres no ano passado.

Thae disse que conhecia pessoalmente vários funcionários governamentais seniores que foram enviados para campos de prisioneiros políticos em 2013, durante os expurgos que se seguiram à execução ordenada por Kim Jong-un de seu tio, Jang Song-thaek.

O comitê de crimes de guerra da ordem internacional de advogados, que inclui veteranos dos julgamentos de Saddam Hussein e Slobodan Milosevic, juntamente com o escritório em Washington da firma de advocacia Hogan Lovells, redigiu argumentos em favor de uma acusação criminal do regime norte-coreano.

Dos 11 crimes contra a humanidade citados no estatuto do Tribunal Penal Internacional, o comitê constatou que há evidências de que o regime norte-coreano cometeu todos menos o apartheid.

Existem motivos amplos para acreditar que os campos de prisioneiros políticos ainda estejam em operação, disse o comitê. Os quatro campos principais podem ser vistos claramente em imagens da Coreia do Norte feitas por satélite.

O relatório concluiu que Kim, como o "líder supremo" da Coreia do Norte, é o responsável último por permitir que esses crimes contra a humanidade sejam perpetuados nos campos de prisioneiros. Mas o relatório considerou que autoridades do partido governista, o Partido dos Trabalhadores, e do Departamento de Segurança Social, também são responsáveis.

"Em vista da estrutura de liderança fortemente controlada da Coreia do Norte, Kim Jong Un e seu círculo mais estreito merecem ser levados a julgamento sob o princípio da responsabilidade de comando", concluiu o relatório.

NEGATIVA

A Coreia do Norte negou terminantemente que opere campos de trabalhos forçados para prisioneiros políticos. Um diplomata sênior da missão norte-coreana nas Nações Unidas disse em 2014, após a divulgação do relatório da Comissão de Inquérito da ONU, que eram prisões normais.

O embaixador norte-coreano às Nações Unidas na época, Jang Il-hun, disse que Pyongyang tomaria medidas contra qualquer esforço para encaminhar Kim ao Tribunal Penal Internacional.

Seu sucessor, Pak Song Il, criticou fortemente as conclusões da Comissão de Inquérito.

"Rejeito e nego totalmente este relatório, que é fabricado e não tem fundamento", ele disse. Ainda segundo Pak, pelo fato de ter escrito sobre o relatório, o "Washington Post" mostrou que tornou-se "seguidor cego da política hostil da administração americana contra a RDPC", usando a abreviação oficial da Coreia do Norte.

Segundo Pak, relatórios como esses não ajudam a resolver "a situação tensa atual".

Esforços anteriores para responsabilizar os líderes norte-coreanos não deram em nada, em grande medida porque o encaminhamento para o Tribunal Penal Internacional requer a aprovação dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas. China e Rússia já deixaram claro que vetariam qualquer iniciativa nesse sentido.

Para Navi Pillay, esse fato não deve impedir a comunidade internacional de tentar responsabilizar o regime norte-coreano. "O que acontece ali é especialmente hediondo. É algo que se mantém há muito tempo, e a população da Coreia do Norte não está recebendo nenhuma ajuda do mundo", ela disse.

Tradução de *CLARA ALLAIN*n


Endereço da página:

Links no texto: