Folha de S. Paulo


Alvo de atirador, escola nos EUA evita massacre ao usar lições de Sandy Hook

Coy Ferreira estava numa sala de aula na zona rural da Califórnia, com mais uma dúzia de crianças de 5 e 6 anos amontoadas num canto, enquanto um atirador disparava rajadas contra a escola e tentava invadi-la. Ferreira estava aterrorizado, pensando que as pessoas morreriam.

Mas as portas estavam trancadas e todas as crianças lá dentro, como previa o plano escolar que funcionários e estudantes haviam praticado e conheciam de cor. Eles fizeram um bloqueio na escola em apenas 47 segundos naquela manhã no mês passado, provavelmente salvando a vida de inúmeras pessoas na Escola Elementar Rancho Tehama.

Elijah Nouvelage - 14.nov.2017/AFP)
Agentes do FBI são vistos em escola elementar no norte da Califórnia após tiroteio em novembro

"Todo mundo sabia o que devia fazer", disse Ferreira, que estava deixando sua filha na escola quando ouviram um tiro nas proximidades. "Ninguém vacilou. Ninguém se escondeu. Todos correram para a sala de aula, como foram ensinados."

A reação quase impecável ao que poderia ter sido um banho de sangue durante um tiroteio mortífero em 14 de novembro ocorreu quase exatamente cinco anos depois que 20 crianças e seis professores foram mortos na escola Sandy Hook em Newtown, Estado de Connecticut. Aquele ataque, que envolveu um homem mentalmente perturbado usando um rifle de assalto, abalou a sensação de segurança que era a norma nas escolas primárias dos EUA.

O massacre em 14 de dezembro de 2012 causou pedidos de maior controle das armas, enquanto as famílias lamentavam a perda de crianças inocentes.

Cinco anos depois, pouco mudou em relação às leis federais sobre controle de armas. Mas o tiroteio de Newtown modificou para sempre o modo como as escolas americanas encaram a segurança e avaliam os riscos, trazendo consigo uma era em que as escolas se sentem especialmente vulneráveis à ameaça de tiroteios e os estudantes têm de saber o que fazer caso aconteça um.

O resultado é que para os estudantes americanos bloqueios como o que ajudou a salvar vidas na Rancho Tehama e o treinamento de atirador ativo hoje são tão comuns quanto os testes de incêndio.

Campainhas e fechaduras fortificaram as portas de escolas que antes ficavam escancaradas. A visão de policiais, mesmo em escolas elementares, hoje é comum. E alguns distritos escolares permitem que funcionários portem armas na escola, no que consideram uma camada adicional de segurança.

"Houve alguma coisa em Sandy Hook", disse Telena Wright, superintendente de escolas em Argyle, no Texas, cujo distrito reforçou as medidas de segurança depois daquele tiroteio. "Foi um massacre tão grande que acho que chamou a atenção dos funcionários e administradores escolares e policiais que trabalham em escolas de todo o país."

Um desses lugares foi o Distrito Escolar Elementar de Corning Union, que inclui a Rancho Tehama, a uma hora de carro a noroeste de Chico, no norte da Califórnia.

"Não tenho dúvida de que a experiência de Sandy Hook influenciou nossa reação como distrito, para qualquer evento de emergência e a este em particular", disse o superintendente Rick Fitzpatrick.

A era dos bloqueios nas escolas começou em 1999, depois que dois estudantes mataram 13 pessoas e a si próprios na Escola Secundária Columbine, em Littleton, Estado do Colorado. Os colégios começaram a realizar testes de treinamento em que as portas são trancadas e as janelas fechadas —ações destinadas a ser copiadas se houver uma emergência.

Depois do tiroteio em Newtown, os bloqueios tornaram-se parte regular da escola para crianças pequenas. Assim como, em certos lugares, policiais armados em escolas elementares.

"Houve uma consciência mais ampla de que as escolas elementares e médias também correm risco", disse Heidi Wysocki, cofundadora da First Defense Solutions, do Texas, que ajuda as escolas a se proteger e planejar para situações de tiros e outras emergências. "Ninguém pensa que alguém vai assassinar 26 crianças e professores, porque é terrível. É simplesmente um horror impensável, e isso não fazia parte de nossas conversas."

Sandy Hook também criou uma nova e polêmica abordagem à segurança nas escolas: o teste de assaltante armado, quando as escolas montam um cenário que envolve um atirador em massa, às vezes incluindo a polícia no exercício. A prática atraiu análises, algumas criticando-a como potencialmente traumática para os alunos, especialmente os mais jovens.

Em Akron, Ohio, as escolas começaram o treinamento de atirador ativo mais ou menos na mesma época do ataque a Sandy Hook. O tiroteio também fez o distrito equipar algumas escolas com portas secundárias, alarmes e vidro grosso.

O distrito hoje realiza exercícios de atirador ativo quatro vezes por ano, treinamentos especiais para cada grupo etário, disse Dan Rambler, o diretor distrital para Serviços de Apoio aos Estudantes e Segurança. Os pais são convidados a assistir a vídeos de treinamento e dar opiniões.

Em classes mais jovens, a questão é abordada como um perigo estranho. Mas as crianças, segundo Rambler, muitas vezes sabem o que está acontecendo: o filho dele estava no jardim de infância durante uma das primeiras sessões de treinamento e disse a seu pai que ele se dirige a más pessoas, mas "tem pessoas que vão às escolas e atiram nas pessoas", lembra o pai.

Jeff Fritz, superintendente de escolas no Condado de Clay, em Indiana, disse que quando começou na carreira de educador, há 35 anos, as "portas ficavam bem abertas" na escola em que trabalhava. Hoje não mais.

Os 4.000 alunos de condado hoje praticam para enfrentar um atirador ativo. Fritz disse que os alunos aprendem a correr, esconder-se ou lutar —sendo esta a última opção.

"Não é diferente do que fazemos nos testes de furacões e de incêndio", disse ele. "Isso está em primeiro plano. Eu digo a meus funcionários e nossos estudantes que nossa prioridade número um, acima das notas nas provas ou de projetos de edificação... é a segurança escolar."

Alguns Estados e distritos estão permitindo que funcionários portem armas nas escolas. Pelo menos oito Estados autorizam os detentores de porte de armas a ter armas de fogo em uma escola mista [elementar e secundária], segundo o Centro Jurídico Giffords para Evitar a Violência Armada.

Em Argyle, Texas, placas diante das escolas dizem que os funcionários estão armados e "podem usar a força que for necessária para proteger nossos alunos". Foi uma decisão, segundo Wright, que decorreu diretamente de Sandy Hook.

Quando autoridades do distrito escolar Briggsdale, na área rural do Colorado, ouviram falar no tiroteio em Sandy Hook, eles pensaram em quanto tempo a polícia levaria para reagir em suas escolas. Em sua área distante no norte do Estado, a reação a uma emergência provavelmente levaria no mínimo 25 minutos.

Hoje há funcionários que portam armas escondidas e foram treinados para atuar como guardas de segurança se necessário. Suas identidades são sigilosas. O superintendente, Rick Mondt, disse que a reação dos pais foi positiva: eles se sentem melhor com a escola não sendo um alvo fácil. "Alguns pais trouxeram seus filhos para cá por causa disso", disse ele.

Alguns dos pais das crianças mortas em Newtown canalizaram sua dor para tornar as escolas mais seguras.

Michele Gay e Alissa Parker cofundaram a Safe and Sound Schools [Escolas solidamente seguras], que busca melhorar a segurança nas escolas por meio de treinamento, discussão e parcerias. Ambas perderam suas filhas em Sandy Hook; a de Gay, Josephine, 7, e a de Parker, Emilie, 6.

Gay disse que houve uma mudança profunda no modo como as escolas pensam sobre segurança e se planejam para o pior, com pais e alunos hoje fortemente envolvidos, e muito maior colaboração entre diferentes órgãos e grupos.

Mark Barden, cujo filho Daniel, 7, foi morto, foi cofundador da Sandy Hook Promise com Nicole Hockley, que perdeu seu filho, Dylan. A organização trabalha nos 50 Estados americanos com escolas e outras organizações para ensinar os sinais de advertência muitas vezes exibidos por potenciais pessoas violentas, pessoalmente ou nas redes sociais.

Barden disse que os últimos cinco anos foram "indescritivelmente difíceis e desafiadores". Ele disse que está honrando a memória de Daniel ao tornar as escolas mais seguras e salvar vidas.

"Espero que se tivermos esta conversa daqui a cinco ou dez anos não precisemos treinar nossos filhos para lidar com um atirador ativo", disse ele.

Mas os tiroteios nas escolas continuam. Desde Columbine, 18 anos atrás, mais de 135 mil estudantes em pelo menos 164 escolas primárias ou secundárias experimentaram um tiroteio na escola até abril de 2017, segundo uma análise do "Washington Post" de arquivos on-line, números do Estado e reportagens na imprensa. Isso não inclui dezenas de suicídios, acidentes e ataques após o horário de aulas que também expuseram as crianças a tiros.

Houve pelo menos três tiroteios em escolas de ensino misto neste ano. Em setembro, um aluno de 15 anos em Rockford, Estado de Washington, matou um aluno e feriu outros três. No mesmo mês, um estudante de 14 anos feriu a tiros um colega de classe em Mattoon, Illinois. Dois estudantes foram mortos na última quinta-feira (7) em um tiroteio em escola em Aztec, Novo México, depois que um morador de 21 anos entrou na escola fingindo ser um aluno e cometeu o que as autoridades disseram ter sido um ataque planejado com uma arma Glock comprada legalmente; o atirador também morreu.

"Obviamente fazemos testes e esperamos que nada jamais aconteça", disse o superintendente escolar municipal de Aztec, Kirk Carpenter. "Nosso pessoal e até nossos substitutos reagiram de uma maneira que salvou muitas vidas."

Em Rancho Tehama, Califórnia, as autoridades creditam a seus testes, à rápida ação dos funcionários e pais e a uma dose de sorte por garantir que ninguém foi morto no ataque de novembro.

Ferreira e sua filha de 5 anos estavam parados em frente à escola quando ouviram um estalido. Ele pensou que fosse um rojão. Mas foi alto o suficiente para que algumas crianças se atirassem ao chão.

Quando a secretária da escola ouviu mais dois estouros, ela anunciou um bloqueio.

Um professor chamou a todos para dentro. Ferreira escutou um ruído forte quando a caminhonete do atirador bateu nos portões da escola. Ele disse para sua filha correr e a outras crianças que entrassem no prédio.

Todos rapidamente chegaram à classe, exceto uma menina que estava do outro lado do playground e ficou assustada demais para se mover. Ferreira correu até ela, agarrou-a e correu para dentro. Ele olhou pela janela e o professor lhe disse para se afastar.

As cortinas baixaram quando ele recuou e as balas começaram a rasgá-las.

As crianças não se mexiam nem faziam barulho, como tinham praticado.

Ferreira pensou em Sandy Hook e nos professores que morreram para proteger as crianças. Pensou que talvez pudesse usar o extintor de incêndio como arma se o atirador entrasse.

Mas a porta estava trancada. As crianças tinham entrado. Dois meninos se esconderam embaixo das carteiras. Um deles, Alejandro Hernandez, estava sangrando; foi atingido no pé e no pulmão por balas que perfuraram a parede.

Alejandro não chorava. Só mais tarde ele disse a Ferreira: "Quero ficar com minha mãe".

O atirador foi embora, sem conseguir entrar. Policiais chegaram e Alejandro foi levado ao hospital. Ele já está em casa, muito assustado para voltar à escola, e não quer falar sobre o tiroteio. Mas se recupera bem e não precisa mais tomar analgésicos para os ferimentos. Sua mãe, Angelica Monroy, está contente porque a escola se bloqueou tão rapidamente.

"Eu realmente..." disse ela, esforçando-se para se controlar. "Agradeço muito a eles por tudo."

Naqueles segundos naquele dia, as crianças seguiram o exercício que tinham praticado. Os adultos sabiam o que fazer.

Se não fossem as lições de Sandy Hook, se não fosse seu plano, se tudo fosse como em uma manhã qualquer de terça-feira, os pais e as autoridades escolares tremem ao pensar no que teria acontecido em Rancho Tehama.

"Ele teria pego todos nós do lado de fora", disse Ferreira. "Teria campo livre para atirar."

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


Endereço da página:

Links no texto: