Folha de S. Paulo


Análise

Deposição de Mugabe mostra como poderá ser o fim de Maduro

Da pujança agrícola brasileira a exemplos mais gerais sobre juntas militares, a América Latina muitas vezes forneceu lições úteis à África. Ultimamente, porém, a instrução está correndo no outro sentido, pelo menos quando se trata da Venezuela.

De fato, a derrubada de Robert Mugabe em Harare pode mostrar como a ditadura de Nicolás Maduro em Caracas poderá terminar um dia. As semelhanças são muitas, do plano macroeconômico ao conjugal. Até Maduro reconheceu tacitamente os paralelos quando condenou o golpe no mês passado em Zimbábue, "esse país irmão".

Presidência da Venezuela - 5.dez.2017/Xinhua
O líder venezuelano, Nicolás Maduro, discursa em evento com mineiros no Estado de Bolívar na terça
O líder venezuelano, Nicolás Maduro, discursa em evento com mineiros no Estado de Bolívar na terça

A União Nacional Africana Zimbabuana (Zanu-PF, partido do regime) encontra seu corolário no Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). Ambos os regimes são formalmente democráticos, mas apoiados por militares e autoritários. Ambos sobreviveram ao isolamento econômico por mais tempo do que se esperava, estancaram protestos civis maciços e superaram partidos de oposição.

Ambos os regimes também se retratavam como baluartes contra o imperialismo, atraindo favores da China e da Rússia, enquanto as elites roubavam o país. Até suas primeiras-damas têm muito em comum.

A vingativa "Gucci Grace" Mugabe tem sua contrapartida na maquiavélica Cilia Flores, ou a "primeira-combatente" da Venezuela, como prefere ser chamada essa política ambiciosa e nepotista.

Mas a mudança em Zimbábue também sugere como poderá terminar o regime de Maduro.

Primeiro há a importância de perder o apoio das superpotências. A China negou insistentemente qualquer papel na derrubada de Mugabe. Mas, como disse um relatório de inteligência de seus espiões, revisto pela agência Reuters em 30 de outubro, "a China e a Rússia procuram mudanças... estão cansadas da liderança de Mugabe".

O mesmo poderá acontecer na Venezuela. A China tem um interesse estratégico nas vastas reservas energéticas da Venezuela, mas só se elas forem extraídas do solo. E, ao contrário, a produção está diminuindo depressa.

Isso sustenta os preços da energia e, como maior importador de energia do mundo, vai contra os interesses econômicos da China. Pequim, que tem créditos de US$ 20 bilhões com a Venezuela, mostrou-se indisposta a socorrer Caracas muito mais.

Segundo, há o papel dos "insiders". No Zimbábue, o ímpeto por transição veio de dentro dos corredores do poder, mais que da oposição ou das ruas.

Maduro é sensível a esses perigos. Foi por isso que ele expurgou potenciais adversários na semana passada, incluindo o embaixador do país na ONU, e colocou generais em altos cargos na PDVSA, a companhia de petróleo estatal.

É improvável que um major-general sem qualquer experiência na direção da PDVSA melhore a empresa em dificuldades —assim como ter generais controlando a economia nada fez para conter a hiperinflação. Também envia uma mensagem ruim aos parceiros estrangeiros.

Mantendo o Exército feliz, porém, Maduro cimentou o controle político e afastou potenciais cismas, pelo menos por enquanto. O chamado "diálogo" com a oposição, como aconteceu neste fim de semana, compra tempo.

Terceiro, se o ímpeto de transição vier de dentro do regime, as figuras depostas também precisam de uma saída segura, pois isso torna a mudança mais rápida e menos violenta.

Mugabe teria conseguido um pagamento de US$ 10 milhões como parte do acordo de transição, enquanto "insiders" corruptos garantiram uma anistia de três meses para devolver parte do que roubaram.

Fazer o mesmo na Venezuela pode parecer moralmente repugnante, diante dos abusos aos direitos humanos e os estimados US$ 300 bilhões que foram roubados. Também pode ser um requisito necessário para a mudança.

Há sempre um perigo de se generalizar demais a partir do particular. Cada país tem sua própria dinâmica. A Venezuela está mais na mira dos EUA do que o Zimbábue jamais esteve. Maduro também não goza da mesma estatura que Mugabe já teve, como ex-combatente pela libertação.

Mas as comparações são claras, pelo menos a quarta lição, a mais séria de todas. O Zanu-PF sob Mugabe reinou por 37 anos. Na Venezuela, o "chavismo" governou apenas 17. Embora quase falido, à beira de declarar a moratória e com uma população quase literalmente esfaimada, ele ainda poderá durar muito mais.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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