Folha de S. Paulo


Opinião

França e Itália são cúmplices dos crimes que repudiam na Líbia

Dias atrás, nossa equipe na Líbia prestou consultas médicas a um grupo de cem homens e mulheres em um centro de detenção na região de Misrata. Eles haviam sido levados ao centro depois que guardas costeiros da Líbia interceptaram o seu barco e os devolveram à terra.

Embora trabalhemos em centros de detenção, não fazemos ideia do que acontece com as pessoas mantidas neles, pois os pacientes podem desaparecer sem deixar vestígios de uma semana para outra.

Alessio Paduano - 6.nov.2017/AFP
Imigrante africano tenta embarcar em navio de resgate após barco naufragar no mar Mediterrâneo) ORG XMIT: XAC102
Imigrante africano tenta embarcar em navio de resgate após barco naufragar no mar Mediterrâneo

No verão de 2017 no Hemisfério Norte, a Guarda Costeira da Líbia intensificou as interceptações no Mediterrâneo com apoio da União Europeia (UE) e seus países-membros.

A França e a Itália têm um papel crucial na concepção e implementação dessa política. A Líbia é mais do que nunca uma armadilha para os que esperam encontrar trabalho no país ou o atravessam a caminho da Europa.

As imagens chocantes veiculadas pela rede de TV americana CNN em 14 de novembro trouxeram à luz uma situação na Líbia que é há muito denunciada por organizações internacionais.

Um negócio lucrativo de sequestro, tortura e extorsão de migrantes e refugiados, reduzidos a mercadorias, é facilitado por políticas migratórias repressivas, já que a Europa está disposta a fazer tudo para conter os migrantes que chegam.

Ainda assim, as imagens de venda de escravos mostradas na CNN provocaram reações políticas; a França condenou o "crime contra a humanidade" e pediu uma sessão de emergência do Conselho de Segurança da ONU.

Mas o que pensar dos que, como o presidente Emmanuel Macron, condenam o que está acontecendo na Líbia e ao mesmo tempo continuam a apoiar a Guarda Costeira líbia e a financiar medidas que visam a manter as pessoas no inferno do qual elas tentam escapar? A hipocrisia chega a um nível inaudito.

Quem ainda pode fingir que homens, mulheres e crianças interceptados no mar e devolvidos à Líbia serão alojados em centros confortáveis, recém-pintados, reformados segundo "padrões internacionais"?

Uma vez de volta, não há dúvida de que serão lançados numa situação de extrema violência e precariedade, sob um pano de fundo de fronteiras difusas entre as autoridades líbias e as redes de traficantes.

A insegurança e as restrições que sofremos para ter acesso a essas pessoas nos tornam conscientes dos limites do que podemos esperar alcançar. Nossos médicos, que não têm acesso desimpedido aos detidos, não são livres para decidir quem examinar ou tratar; há pessoas que são escondidas para evitar que nossas equipes os ajudem.

Assim como as representações diplomáticas e outras agências da ONU, a Organização Internacional para Migrações (OIM) e o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) têm uma presença limitada no país.

Em outubro de 2017, o número de migrantes mantidos nos centros de detenção oficiais na Líbia triplicou, segundo a OIM e o Departamento de Combate à Migração Ilegal, agência líbia que os administra.

Os observadores de direitos humanos da ONU ficaram chocados com o que viram em centros de detenção em Trípoli em uma visita no início de novembro: milhares de pessoas emaciadas e traumatizadas, empilhadas, trancadas em armazéns, sujeitas a tipos extremos de violência e abuso.

O que Macron espera alcançar com ações na Líbia para desmantelar as redes de contrabando? Outra intervenção militar estrangeira servirá apenas para alimentar a dinâmica do conflito na Líbia. Combater contrabandistas sem fornecer formas seguras e legais de trânsito e fuga é um beco sem saída.

Além de gestos simbólicos, o que é urgentemente necessário é uma mudança na política migratória da França e de seus parceiros europeus na Líbia. Ações são necessárias não só para a aliviar o sofrimento das pessoas, mas para pôr fim a políticas que aumentam sua miséria.

Assim, mais uma vez, pedimos que a UE —e particularmente França e Itália— facilitem as operações de busca e salvamento no mar e cessem seu apoio à guarda costeira da Líbia na interceptação e devolução dos migrantes e refugiados que tentam fugir do país —que não é signatário da Convenção de Genebra sobre o estatuto dos refugiados.

Sem isso, a França atingirá mais um degrau de cumplicidade nos crimes que condena. Todas essas pessoas que se encontram presas na armadilha líbia, armada em parte pela França e a UE, devem dispor de todos os possíveis meios de escapar.

Isso inclui a plena aplicação do direito de asilo para a pessoa elegível, aumento das ofertas de retorno voluntário aos países de origem para candidatos genuínos e formas suplementares de proteção, nos países vizinhos e na Europa (e isso inclui a França), para atender às necessidades dos sobreviventes de um inferno na terra.

THIERRY ALLAFORT-DUVERGER é diretor-geral de Médicos Sem Fronteiras França

Este artigo foi publicado originalmente no jornal francês "Le Monde"


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