Folha de S. Paulo


Como o roubo a uma loja pode levar a nova era da privacidade digital

O caso que pode transformar as leis de privacidade na era digital começou com um assalto a uma loja da Radio Shack em Detroit dois meses antes do Natal de 2010. Nos três meses seguintes, oito outras lojas em Michigan e em Ohio foram assaltadas à mão armada.

Os ladrões levaram sacolas cheias de smartphones. Seus próprios telefones ajudariam a colocá-los na prisão.

Na quarta-feira (29) a Suprema Corte vai estudar se promotores violaram a Quarta Emenda constitucional, que proíbe revistas não justificadas, quando coletaram volumes imensos de dados de empresas de telefonia celular, mostrando os movimentos do homem que teria organizado a maioria dos assaltos.

Especialistas nas leis de privacidade disseram que o processo, Carpenter vs. Estados Unidos, número 16-402, é potencialmente importante.

Yuri Gripas - 3.out.2016/Reuters
A sede da Suprema Corte, em Washington; tribunal deve decidir o caso até julho de 2018
A sede da Suprema Corte, em Washington; tribunal deve decidir o caso até julho de 2018

"O processo Carpenter pode ser a ação mais importante do século 21 ligada à privacidade eletrônica", disse Jeffrey Rosen, presidente da ONG National Constitution Center, dedicada a educar o público sobre a Constituição.

Em duas decisões recentes, a Suprema Corte manifestou incômodo em deixar o governo ter acesso ilimitado a dados digitais. Ela restringiu a capacidade da polícia de usar aparelhos de GPS para rastrear os movimentos de suspeitos e decidiu que uma autorização judicial é necessária para fazer revistas em celulares.

Empresas de tecnologia que incluem Apple, Facebook e Google exortaram a Suprema Corte a continuar a atualizar a Quarta Emenda para a era moderna. Segundo o documento legal que registraram, "nenhuma doutrina constitucional deve presumir que os consumidores assumem o risco de incorrer em vigilância governamental realizada sem autorização judicial pelo simples fato de usarem tecnologias que são benéficas e estão cada vez mais integradas à vida moderna."

A decisão da corte, prevista para sair até junho de 2018, vai aplicar a Quarta Emenda, redigida no século 18, a um mundo em que os movimentos das pessoas são gravados continuamente por aparelhos em seus carros, bolsos e carteiras, por pedágios e sistemas de trânsito. O raciocínio seguido pelo Supremo pode também ser aplicado a mensagens de e-mail e texto, buscas na internet e registros bancários e de cartões de crédito.

"O processo tem importância tremenda porque define o papel constitucional em uma gama muito ampla de casos", disse Orin Kerr, professor de direito que em breve passará a fazer parte do corpo docente da University of Southern California.

A ação diz respeito a Timothy Ivory Carpenter, que, segundo testemunhas, planejou os assaltos, forneceu as armas usadas e serviu de vigia, geralmente aguardando do outro lado da rua em um carro roubado. "Ao sinal dele, os assaltantes entravam na loja, mostravam suas armas, prendiam os fregueses e funcionários nos fundos do estabelecimento e mandavam os funcionários encherem suas sacolas com smartphones novos", diz uma decisão judicial, resumindo as evidências contra Carpenter.

Além dos depoimentos apresentados, os promotores usaram meses de registros obtidos de empresas de telefonia celular para provarem suas acusações. Os registros mostraram que o telefone de Carpenter esteve por perto quando ocorreram vários dos assaltos. Ele foi condenado e sentenciado a 116 anos de prisão.

Seus advogados disseram que as empresas de telefonia celular entregaram os registros relativos a 127 dias, que, com base em informações de torres de celular, situaram seu telefone em 12.898 locais. Os promotores sabiam se ele dormiu em casa em noites específicas e se ele foi ou não a sua igreja de hábito nas manhãs de domingo.

"Nunca antes na história do policiamento o governo dispôs da máquina do tempo que ela possui aqui", disse Nathan Freed Wesller, advogado da União Americana de Liberdades Civis (ACLU), que representa Carpenter.

Wessler disse que os promotores deveriam ser obrigados a buscar autorização judicial quando querem ter acesso a mais de 24 horas de dados de localização.

Decisões anteriores do Supremo indicam que não se exigiu autorização judicial. Em 1979, por exemplo, no processo Smith vs. Maryland, a Suprema Corte decidiu que um assaltante suspeito não tinha expectativa razoável de que seu direito de privacidade abrangeria os números discados a partir de seu telefone fixo. A corte considerou que o suspeito entregara a informação voluntariamente a uma terceira parte: a empresa telefônica.

Com base na decisão de "doutrina da terceira parte" no processo Smith, tribunais federais de recursos decidiram que investigadores do governo que pedem informações de empresas de telefonia celular mostrando os movimentos dos usuários tampouco necessitam de autorização judicial.

Uma lei federal, a Lei de Comunicações Armazenadas, prevê que os promotores precisam ir a um tribunal para obter dados de rastreamento, mas o que precisam demonstrar não é causa provável, o padrão exigido para a concessão de uma autorização judicial. Em vez disso, precisam demonstrar apenas que havia "atos específicos e articuláveis indicando que existia base razoável para supor" que as informações procuradas "são relevantes para uma investigação criminal em curso".

Kerr disse que o Congresso está mais bem situado que os tribunais para encontrar o ponto de equilíbrio correto entre a necessidade de informação do governo e os direitos de privacidade. No caso de Carpenter, ele acrescentou, a Quarta Emenda não se aplica, porque não houve busca.

Os advogados de Carpenter apontam para duas decisões recentes e unânimes do Supremo manifestando incômodo com a coleta de volumes grandes de dados digitais. Em 2014, no processo Riley vs. Califórnia, o Supremo decidiu que a polícia geralmente precisa de um mandado de prisão para realizar buscas nos celulares de pessoas que ela prende.

"Os celulares modernos não são apenas mais uma conveniência tecnológica", escreveu o juiz John Roberts, em nome do Supremo. Mesmo o termo "telefone celular" é equivocado, ele disse. "Esse aparelho poderia igualmente bem ser chamado de câmera, tocador de vídeo, arquivo de fichas, agenda, gravador de áudio, biblioteca, calendário, álbum, televisão, mapa ou jornal."

Mas o caso de Riley dizia respeito a informações de posse da pessoa presa. O caso de Carpenter gira em torno de informação de posse de empresas de telefonia celular.

O segundo caso, Estados Unidos vs. Jones, de 2012, dizia respeito a um aparelho de GPS que a polícia fixou no carro de um suspeito e que lhe permitiu rastrear seus movimentos por 28 dias.

Os nove juízes da Suprema Corte concordaram que isso é problemático segundo a Quarta Emenda, mas se dividiram quanto à explicação da decisão. A maioria disse que a polícia não tem o direito de fixar um aparelho sobre propriedade privada. Mas cinco juízes, em pareceres concordantes, expressaram preocupação com a capacidade do governo de coletar volumes imensos de informações privadas.

"O uso de monitoramento de longo prazo com GPS em investigações da maioria dos delitos infringe a expectativa de privacidade", escreveu o juiz Samuel Alito, em nome de quatro juízes do Supremo. "A expectativa da sociedade tem sido que policiais e outros não iriam —e, na maioria dos casos, não podiam— monitorar e catalogar secretamente cada movimento do automóvel de um indivíduo por um período muito longo."

As informações colhidas por torres de telefonia celular não são tão precisas quanto as que são geradas por GPS, mas estão melhorando.

Jeffrey Rosen, que defende a ampliação da proteção à privacidade, disse que o caso de Carpenter pode transformar a aplicação da Quarta Emenda, independentemente da decisão que o Supremo venha a tomar.

"Se a Suprema Corte reconhecer diretamente algo que vem sugerindo em casos recentes, ou seja, que temos, sim, uma expectativa de privacidade em nossos dados digitais e movimentos públicos e que Quarta Emenda proíbe o governo de nos rastrear de porta em porta durante semanas em público, isso será motivo para as pessoas dançarem na rua", ele disse. "Se o Supremo decidir que não temos uma expectativa de privacidade em público exceto quando há algum tipo de transgressão física envolvida, isso será um revés tremendo para a privacidade."

Tradução de CLARA ALLAIN


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