Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Desaparecimento do San Juan toca dores recentes dos argentinos

Ao escrever estas linhas, já se perdia toda a esperança de serem encontrados vivos os 44 tripulantes do submarino ARA San Juan, perdido nas profundezas do Atlântico Sul.

Por nove dias barcos e aviões de 11 países procuraram a embarcação em vão. As famílias, desoladas, enfrentavam câmeras de TV com angústia, raiva, choro e gritos. Afinal, foram elas que tiveram de contar aos jornalistas o que porta-vozes oficiais se negavam a revelar: que todos os tripulantes estão mortos.

Nesta semana não se falou em outra coisa na Argentina. Mas por que essa história teve tanto impacto na sensibilidade coletiva dos argentinos? Acho que pela relação com traumas nacionais da história recente do país e que viraram feridas coletivas que continuam a cicatrizar.

DESAPARECIDOS

As imagens das mulheres, mães e filhas clamando na porta de uma base militar com cartazes exigindo informações sobre seus entes queridos fizeram muitos se lembrarem das mães e avós da Praça de Maio, mas desta vez eram de famílias de militares.

Não há angústia pior que não saber nem pior indignação que saber que as autoridades sabem, mas não dizem.

Talvez essa tragédia de alguns militares que aparentemente faziam uma tarefa útil ao país —proteger suas águas de navios pesqueiros ilegais— ajude a fechar uma das divisões da Argentina: a de que os militares são o inimigo.

Nos protestos de direitos humanos da última ditadura militar (1976-83) um dos gritos era "Não houve erros, não houve excessos: são todos assassinos os milicos do Processo [de Reorganização Nacional, como os militares chamavam o regime]."

Este é o primeiro caso conhecido de militares em que se desconhece seu destino e cujos corpos desapareceram.

MALVINAS

Isto escrevo como jornalista, mas também como veterano da Guerra das Malvinas.

Em 1982 fui convocado e enviado às ilhas. Por uma semana consideraram meu barquinho, o Penélope, naufragado. O radar e o rádio haviam quebrado. Meus pais temiam que eu estivesse morto. A solidão do oceano, sem ver a costa, pode deixar qualquer um louco. A Guerra das Malvinas é uma ferida aberta na Argentina. Soldados muito jovens foram enviados para morrer ou enlouquecer sem o equipamento nem o preparo necessários.

Luciano Veronezi/Editoria de Arte/Folhapress

Os aliados de Mauricio Macri ficam aliviados ao lembrar que a antecessora do presidente, Cristina Kirchner, declarou em 2011 que o ARA San Juan navegaria mais 30 anos. Já os kirchnernistas criticam o governo atual.
Usam a tragédia alheia para se atacar. Enquanto isso, cerca de cem familiares sentem que não são ouvidos por ninguém.

CLAUSTROFOBIA

Foi justamente durante a ditadura e um ano antes da Guerra das Malvinas que saiu um dos filmes mais angustiantes que minha geração viu: "O Barco - Um Inferno no Mar", produção alemã precisa e detalhista sobre a tripulação de um submarino na Segunda Guerra (1939-1945).

Poucas vezes um filme retratou tão fielmente a claustrofobia. O submarino vai ao fundo do mar para não ser bombardeado, atraca a 270 metros, a água começa a entrar e finalmente a embarcação consegue subir à superfície, mas seu capitão morre.

A morte em um submarino é das mais horrorosas: acho que tem relação com estar confinado, saber o que está por vir e não poder fazer nada, uma condenação à morte tendo o mar imenso como algoz impossível de derrotar.

INCOMPETÊNCIA

Ficará na memória dos argentinos o rosto impassível do capitão Enrique Balbi, porta-voz da Marinha, anunciando que "recebemos uma informação sobre um evento anômalo, singular, curto, violento e não nuclear, consistente com uma explosão."

Toda a gestão da crise foi marcada pela incompetência das autoridades militares, sobretudo do Ministério da Defesa. Nem o ministro Oscar Aguad nem sua secretária de Serviços Logísticos para a Defesa e a Coordenação Militar em Emergências, Susana Villata, têm formação na área.

A impressão de desorganização e improviso lembrou enchentes e incêndios em que este governo e o anterior ficaram sobrecarregados.

UMA MULHER

Por último, a tragédia do ARA San Juan tem um personagem que lembra o desastre do ônibus espacial Challenger, da Nasa, que desintegrou após o lançamento, em 1986. Entre os sete mortos estava a professora Christa McAuliffe.

A cara de choque dos alunos reunidos na classe para ver sua professora ir para o espaço ficou como a imagem de um trauma nacional.

Na tripulação do San Juan estava Eliana María Krawczyk, a primeira mulher oficial de submarinos da América Latina. Em um de muitos perfis dedicados a ela na mídia argentina, no "La Nación", sua família, da província de Misiones, a descreve como "doce, mas dura como aço".

Uma mulher entre tantos homens e este desfecho para a primeira submarinista do continente é o último elemento do horror que hoje parte os corações de todo um país.

ROBERTO HERRSCHER, autor de "Los Viajes del Penelope", é jornalista argentino e veterano da Guerra das Malvinas (1982)


Endereço da página:

Links no texto: