Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Crise do Líbano prepara terreno para calamidade no Oriente Médio

Joseph Eid/AFP
'Sua dignidade é a dignidade do Líbano', afirma cartaz com a imagem de Saad Hariri em Beirute

Saad Hariri, até recentemente o primeiro-ministro do Líbano, participou de uma entrevista na Arábia Saudita, no domingo (12) à noite, com a intenção de reconfortar seus compatriotas. Mas não foi esse o resultado.

Hariri renunciou inesperadamente ao posto na semana passada, durante uma visita a Riad, e não voltou ao Líbano desde então, o que gerou grande especulação quanto à possibilidade de que esteja prisioneiro dos sauditas.

De acordo com meus colegas jornalistas, Hariri parecia "cansado" e "comovido" durante a entrevista do domingo, mas insistiu em que havia agido por vontade própria e que não era prisioneiro.

No entanto, funcionários do partido sunita de Hariri disseram a repórteres que acreditavam que Hariri, por muito tempo beneficiário de seus patronos sauditas, havia sido coagido e forçado a renunciar.

O príncipe herdeiro do reino, Muhammad bin Salman, que vem agindo de maneira cada vez mais audaciosa, estava insatisfeito com o acordo de divisão de poder entre Hariri e diversas facções libanesas, entre as quais o Hizbullah, uma organização xiita que conta com o apoio do Irã, grande inimigo dos sauditas. O discurso de renúncia de Hariri teve por foco a ameaça crescente do Hizbullah e, por extensão, do Irã.

De acordo com uma versão dos acontecimentos, Hariri foi instruído a renunciar não muito depois de receber em Beirute um importante diplomata iraniano, Ali Akbar Velayati. "Ele foi convocado à Arábia Saudita e recebeu um ultimato de que deveria apresentar sua renúncia, de acordo com o que fontes diplomáticas importantes me disseram", afirmou Robin Wright, da revista "New Yorker". "O conteúdo de seu discurso de renúncia foi prescrito.

Hariri foi impedido de voltar a Beirute e suas comunicações foram restringidas. A Reuters reportou que o celular dele foi confiscado.

"É um grande show político, não?", disse Mustafa Khalil, 34, um engenheiro libanês que assistiu à entrevista de Hariri em Beirute, ao "Washington Post". "Ele já não está no controle de suas ações. Está dizendo o necessário para sobreviver".

Apanhados no meio de um duelo regional, é perdoável que a maioria dos libaneses esteja tentando encontrar uma maneira de se acomodar à nova situação.

Os conflitos duradouros na Síria e Iraque estão lentamente ingressando em uma nova fase. Nos dois casos, forças que contam com o apoio do Irã estão em ascensão.

O Hizbullah enviou dezenas de milhares de combatentes à Síria para defender o regime do ditador Bashar al-Assad. E se as milícias favoráveis a Assad concluírem a captura de Abu Kamal, cidade-chave na fronteira entre Síria e Iraque, dos remanescentes do Estado Islâmico, os ideólogos de Teerã enfim terão completado seu arco de influência estratégica do Irã ao Mediterrâneo, um objetivo duradouro do regime iraniano.

Tudo isso deixa nervosos os sauditas e os israelenses —que já travaram diversas guerras contra o Hizbullah.

Os analistas apontam para um possível cenário que envolveria sanções econômicas dos sauditas ao Líbano e talvez ataques israelenses às posições do Hizbullah, ainda que estes últimos sejam menos prováveis.

"Vivemos um momento realmente decisivo", disse Paul Salem, do Middle East Institute, em uma conferência telefônica organizada pelo Wilson Center, de Washington.

Depois de séculos de domínio otomano, a ordem árabe que emergiu das cinzas do império aparentemente desmoronou. O Irã "consolidou seu controle sobre todo o Levante", disse Salem, e outros Estados muçulmanos sob controle sunita, como a Turquia e o Egito, "não estão participando", por conta de suas disfunções políticas internas. O vácuo vem sendo preenchido pelos sauditas —com uma agenda chocantemente ativista.

"Estamos em um novo Oriente Médio, onde veremos uma série de confrontos e guerras", disse Salem.

Não está claro o que os sauditas têm a ganhar ao forçar a saída de Hariri, seu suposto aliado. "A renúncia dele nada faz para reduzir o poder do Hizbullah", escreveu o jornalista Thanassis Cambanis na revista "Atlantic". "Na verdade, um vácuo beneficia o Hizbullah, que não precisa do Estado libanês a fim de firmar seu poder e legitimidade."

Cambanis prossegue: "Se não buscou uma guerra diretamente, a Arábia Saudita no mínimo vem travando uma campanha para alimentar a ideia de que uma guerra é sempre possível. Embora uma guerra entre a Arábia Saudita e o Irã provavelmente não deva inclinar o balanço de poder em favor do reino saudita, perturbaria ainda mais as pessoas de uma parte do mundo na qual já há milhões de refugiados de conflitos recentes, que causaram centenas de milhares de mortes, e na qual epidemias de doenças e subnutrição atacam com deprimente regularidade".

"Em lugar de uma guerra direta, as maquinações de Riad provavelmente produzirão uma guerra de prepostos desestabilizadora", afirma.

Fayez Nureldine/AFP
O príncipe herdeiro saudita Mohamed bin Salman, 32
O príncipe herdeiro saudita Muhammad bin Salman, 32

É esse o caso no Iêmen, onde uma mortífera intervenção liderada pelos sauditas intensificou os conflitos civis no país empobrecido e causou uma crise humanitária horrenda.

A Arábia Saudita está especialmente preocupada com o apoio iraniano e do Hizbullah aos rebeldes houthi do Iêmen, mas a dispendiosa guerra que os sauditas iniciaram no país se transformou em impasse.

Mesmo assim, Salman vem promovendo uma política ainda mais agressiva com relação ao Iêmen, além de um bloqueio ao Qatar, que se arrasta sem solução à vista.

"A impulsividade [do príncipe herdeiro saudita] vem sendo uma constante —da guerra no Iêmen às ondas de prisões de críticos construtivos, membros da família real e autoridades importantes acusadas de corrupção. A severidade da ação da Arábia Saudita contra o Líbano espelha o bloqueio do Qatar em junho —abrupta, sem espaço para negociação", escreveu o jornalista saudita Jamal Khashoggi, crítico veemente da liderança saudita.

É claro que, como aponta Khashoggi, uma escalada do conflito com o Qatar que terminaria em guerra parecia inevitável, no começo, mas não se concretizou. E conflitos em outros lugares tampouco são inevitáveis.

Isso acontece porque, a despeito da estridente retórica anti-iraniana da Casa Branca, seria improvável que os Estados Unidos recebessem um confronto desse tipo positivamente.

Os funcionários do Departamento de Estado parecem mais preocupados em estabilizar o governo do Iraque, razoavelmente simpático aos Estados Unidos, do que em cutucar o Irã sobre o Líbano.

Mas a incerteza do momento —e a falta de esforços diplomáticos significativos entre as principais forças da região— acarreta o risco de uma derrocada mais perigosa.

"Qualquer coisa que aconteça terá de envolver uma barganha geopolítica muito mais ampla, com a participação das grandes forças", afirmou Bassel Salloukh, cientista político na Universidade Americana do Líbano, em Beirute. "Mas o território político não é propício a esse tipo de barganha."

Enquanto isso, ele diz, "o Líbano está sendo forçado a carregar um peso com o qual não é capaz de arcar".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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