Folha de S. Paulo


Trump está transformando os tribunais federais de apelação dos EUA

Nas semanas antes de Donald Trump chegar ao poder, alguns advogados que entraram para sua administração se reuniram numa firma de advocacia perto do Capitólio, onde Donald F. McGahn II, que pouco depois se tornaria assessor jurídico da Casa Branca, preencheu uma lousa com um plano secreto para encher os tribunais federais de apelações com juízes jovens e profundamente conservadores.

Instruído por Trump a aproveitar ao máximo a oportunidade de remodelar o Judiciário, McGahn mapeou uma estratégia e potenciais nomes de juízes a serem nomeados para os tribunais.

Segundo duas pessoas que acompanharam o esforço, a estratégia consistia em preencher vagas em tribunais de recursos com várias vagas e onde senadores democratas que serão candidatos à reeleição em 2018 em Estados conquistados por Trump —como Indiana, Michigan e Pensilvânia— poderiam ser pressionados a não bloquear suas indicações. E a confirmação dos novos nomes seria acelerada, evitando encher o Senado com um excesso de nomes de indicados aos tribunais distritais, onde a filosofia legal dos juízes é menos crucial.

Quase um ano mais tarde, o plano está se concretizando. Trump já nomeou oito juízes de tribunais de apelações. É o maior número nomeado depois de tão pouco tempo na Presidência desde Richard Nixon, e na quinta-feira (8) o Comitê do Judiciário no Senado, em voto que seguiu linhas partidárias, aprovou um nono indicado a um tribunal federal de recursos —Gregory Katsas, o vice-assessor jurídico de Trump na Casa Branca.

Os republicanos estão sistematicamente preenchendo vagas nos tribunais de recursos que seu partido manteve abertas nos dois últimos anos do governo de Barack Obama, graças a um grupo de juízes especialmente conservadores cujos cargos eram vitalícios. O Partido Democrata aboliu no final de 2013 a capacidade de 41 senadores obstruírem essas indicações e pouco mais tarde perdeu o controle do Senado, de modo que hoje tem pouco poder para impedir as nomeações.

A maioria dos juízes nomeados tem credenciais acadêmicas fortes e já trabalhou para juízes conservadores muito conhecidos, como o juiz da Suprema Corte Antonin Scalia. Nas votações de confirmação de seus nomes, cinco dos oito novos juízes não chegaram a conseguir o limiar de 60 votos necessário para impedir a possibilidade de medidas de obstrução.

Um desses cinco é John K. Bush, presidente de uma seção da rede legal conservadora Federalist Society e autor de blog posts politicamente carregados, por exemplo comparando o aborto à escravidão; e Stephanos Bibas, professor de direito na Universidade da Pensilvânia que chegou a propor o uso de choques elétricos para punir os condenados de determinados crimes, se bem que ele tenha rejeitado a ideia mais tarde. Dos 18 indicados por Trump à presidência de tribunais de apelações, 14 são homens e 16 são brancos.

Republicanos e democratas disputam as nomeações de juízes desde os tempos de Ronald Reagan, mas a administração Trump está concluindo uma transformação fundamental dessa empreitada. E as consequências podem transcender sua oportunidade de moldar o Judiciário.

Quando os democratas recuperarem o poder, se eles seguirem a mesma estratégia e sistematicamente nomearem juízes declaradamente liberais, os tribunais de apelações vão acabar ficando tão ideologicamente divididos quanto está o Congresso hoje.

"É uma ideia profundamente deprimente: que não conseguimos nomear juízes a não ser que tenhamos um governo unificado, e que as nomeações que acabamos conseguindo são tão polarizadas quanto o resto do país", disse Lee Epstein, professor de direito e cientista político na Universidade Washington, em St. Louis. "Que implicações isso tem para a legitimidade dos tribunais nos Estados Unidos? Não é uma perspectiva animadora."

Por enquanto, os conservadores estão se deleitando com seu sucesso. Durante a campanha eleitoral, Trump consolidou o apoio de eleitores de direita céticos em relação a ele, prometendo eleger juízes do Supremo a partir de uma lista de nomes redigida por McGahn com a ajuda da Federalist Society e da conservadora Fundação Heritage.

A boca de urna mostrou que eleitores que se importam com os tribunais ajudaram a garantir a vitória apertada do presidente. Agora o presidente os está premiando pelo apoio.

"Vamos marcar recordes em matéria do número de juízes", disse Trump recentemente na Casa Branca, acrescentando que há muitos outros nomes a serem indicados.

Os juízes dos tribunais de apelações chamam menos atenção que os juízes da Suprema Corte, como Neil Gorsuch, que Trump instalou na vaga deixada pela morte de Antonin Scalia e que os republicanos, liderados por Mitch McConnell, o líder da maioria republicana no Senado, se recusaram a deixar que Obama preenchesse. Mas os 12 tribunais regionais de apelações exercem influência profunda sobre a vida dos americanos, dando a palavra final em 60 mil processos por ano que não estão entre os cerca de 80 levados à Suprema Corte.

Nan Aron, da entidade liberal Alliance for Justice, disse que seu grupo vê muitos dos juízes indicados por Trump como "extremistas" —hostis aos direitos das mulheres, dos trabalhadores e membros de minorias e indevidamente favoráveis aos ricos. Mas os conservadores, para os quais os juízes indicados por Trump representam um dos poucos pontos positivos marcados pelo dividido Partido Republicano, enxergam esses juízes como craques do direito que vão interpretar a Constituição de acordo com seu texto e sentido original.

E eles enxergam uma oportunidade tremenda no fato de Trump ser o primeiro presidente republicano cujos indicados podem ser confirmados por maioria simples de votos, especialmente porque é provável que o presidente preencha um número incomum de vagas.

Trump começou com 21 vagas abertas em tribunais de apelações, isso porque, desde que os republicanos conquistaram o controle do Senado, em 2015, eles basicamente obstruíram completamente o processo de confirmação de indicados.

Desde a posse de Trump foram abertas seis vagas adicionais de juízes de tribunais de apelações, e quase metade dos juízes ativos de tribunais de apelações já têm direito de conseguir o status de sênior —uma semiaposentadoria que já permite a indicação de um sucessor— ou chegarão a essa idade em pouco tempo, segundo Russell Wheeler, acadêmico do Brookings Institution.

Com isso, Trump está prestes a levar a um novo pico de influência sobre o direito e a sociedade americanos o movimento legal conservador, que tomou forma na década de 1980 como reação a décadas de decisões judiciais liberais em questões como os direitos de suspeitos de crimes e de mulheres que querem abortar.

"Esta oportunidade é singular na história moderna pelo grande número de vagas de juízes, o número de vagas potenciais devido à idade crescente dos juízes em exercício, e a existência de um presidente que se importa profundamente com esta questão", disse Leonard A. Leo, assessor informal de Trump para questões das cortes e vice-presidente executivo da Federalist Society.

Os liberais acusam Trump de ter entregue o processo de indicação de juízes à Federalist Society. Mas dois funcionários da administração argumentam que essa alegação não leva em conta o amadurecimento do movimento legal conservador, com a chegada à maioridade de uma geração de advogados republicanos moldados pela leitura dos pareceres discordantes originalistas de Scalia e pela disputa amarga de 1987 em torno da indicação fracassada do juiz Robert Bork ao Supremo.

McGahn e quase todos os advogados que trabalham para ele na Casa Branca são membros da Federalist Society há anos, de modo que os relacionamentos construídos dentro dessa rede de conservadores saturam as discussões de potenciais indicados, eles disseram.

Trump também vem recebendo ajuda do presidente do Comitê do Judiciário no Senado, o republicano Charles E. Grassley, na questão de remover impedimentos às indicações e manter a agilidade do processo.

Por exemplo, as audiências de confirmação normalmente sempre tiveram apenas um candidato a juiz de apelação por vez (além de vários indicados para tribunais distritais). Mas Grassley programou três audiências este ano com dois indicados a tribunais de apelações. É o mesmo número de audiências que em todos os oito anos da administração Obama, segundo assessores congressionais.

O papel de vigilância independente exercido pela American Bar Association (a ordem dos advogados dos EUA), que desde o governo de Eisenhower sempre examinou potenciais juízes —fazendo entrevistas confidenciais com pessoas que trabalham com eles e avaliando sua experiência, integridade e temperamento— também está se enfraquecendo. Os nomes escolhidos por presidentes de ambos os partidos já enfrentaram obstáculos no passado com a ABA, mas os republicanos acusaram o grupo de viés anticonservador.

Tradicionalmente os voluntários da ABA examinam os potenciais juízes antes de a Casa Branca decidir se envia seus nomes ao Senado, mas Trump —como fez o presidente George W. Bush— tirou essa função da associação, obrigando-a a avaliar os nomeados depois.

Este ano Grassley promoveu audiências com quatro indicados a juízes de tribunais distritais antes de a ABA ter concluído seu trabalho, algo que aconteceu com apenas sete juízes durante os oito anos da Presidência Bush.

A ABA mais tarde desqualificou dois dos indicados, dizendo que não tinham experiência suficiente com julgamentos. Apesar disso, na quinta-feira o Comitê do Judiciário apresentou ambos à avaliação do Senado. Uma deles, Holly Teeter, promotora federal de 38 anos que deixou por muito pouco de alcançar o padrão mínimo de 12 anos de experiência exigido pela ABA, foi aprovada pelos dois partidos.

Mas o outro, Brett Talley, que tem 36 anos, virtualmente nenhuma experiência de julgamentos e escreveu blog posts politicamente carregados sobre tópicos como o direito às armas de fogo, foi aprovado apenas com o voto republicano.

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página:

Links no texto: