Folha de S. Paulo


Fuga misteriosa de premiê libanês para Riad acirra tensões na região

Aziz Taher/Reuters
Cartaz que retrata o primeiro-ministro do Líbano, Saad Hariri, é visto na capital do país, Beirute

Quando o primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, viajou subitamente ao exterior na semana passada, acreditava-se que ele estivesse fazendo uma visita de rotina à Arábia Saudita, o país que é seu patrono político. Mas no dia seguinte, ele inesperadamente anunciou sua renúncia, em um vídeo gravado em Riad, capital saudita.

Hariri ainda não voltou ao Líbano.

Na sexta-feira (10), o movimento Hizbullah, apoiado pelo Irã, e integrante da coalizão governista de Hariri no Líbano, acusou os sauditas de deter o primeiro-ministro contra sua vontade, e os sauditas rebateram que o estavam protegendo contra um complô de assassinato não especificado.

O caso de Hariri é só mais um dos muitos eventos confusos —da detenção de príncipes e empresários milionários pela Arábia Saudita no primeiro fim de semana de novembro à ordem do país para que seus cidadãos deixem o Líbano, na quinta-feira (9)— que estão provocando uma escalada das tensões no Oriente Médio e alimentando ansiedade sobre um conflito militar que poderia estar a ponto de explodir na região.

O secretário de Estado norte-americano, Rex Tillerson, fez um alerta na sexta-feira "contra qualquer parte, dentro ou fora do Líbano, que tente usar o país como cenário de conflitos entre prepostos, ou que contribua de qualquer maneira para a instabilidade daquele país", uma mensagem aparentemente dirigida ao Hizbullah, à Arábia Saudita e ao Irã.

Mesmo antes dos eventos da semana passada, analistas e autoridades da região já estavam ansiosos quanto ao que veem como uma combinação volátil: um líder saudita jovem e impulsivo e suas ameaças cada vez mais vigorosas de que tentará reduzir a influência do Irã, um governo Trump igualmente impulsivo sinalizando amplo acordo com as políticas sauditas, e advertências cada vez mais explícitas de Israel de que é possível que o país trave nova guerra contra o Hizbullah.

Agora, analistas e diplomatas estão correndo para tentar compreender o que significam os mais recentes desdobramentos, se existe conexão entre eles e se, como temem alguns analistas, eles são parte dos preparativos para uma guerra regional.

Até o anúncio de sua renúncia, no sábado (4), Hariri não havia dado qualquer sinal de que pretendesse deixar o governo.

Horas mais tarde, um míssil disparado do Iêmen chegou perto de Riad antes de ser abatido. A Arábia Saudita atribuiu ao Irã e ao Hizbullah a culpa pelo artefato, dando a entender que os dois haviam ajudado os rebeldes houthi do Iêmen a dispará-lo.

EXPURGO SAUDITA

Antes que o mundo tivesse chance de absorver a notícia, o ambicioso e agressivo príncipe herdeiro saudita, Mohammed bin Salman, ordenou a detenção de centenas de cidadãos de seu país —dentre os quais 11 príncipes, ministros do governo e alguns dos empresários mais proeminentes do reino—, em uma operação que ou era parte de uma campanha de repressão à corrupção, como informaram as autoridades sauditas, ou foi um expurgo político, como avaliaram analistas externos.

Depois surgiu a notícia de que, uma semana antes, Jared Kushner, genro e assessor do presidente Donald Trump, que visitou Israel e a Arábia Saudita em missões oficiais, havia feito mais uma visita à Arábia Saudita, não revelada até ali, e que havia conversado até a madrugada com o príncipe herdeiro do reino.

A Casa Branca não revelou a pauta do encontro, mas fontes do governo norte-americano revelaram em conversas particulares que ele se incluía nos esforços do governo Trump em promover um acordo de paz entre Israel e os palestinos.

Na segunda-feira (6), as autoridades sauditas afirmaram considerar o míssil lançado do Iêmen como um ato de guerra da parte do Irã e do Líbano, e na quinta-feira (9) o reino chocou o Líbano ao ordenar que seus cidadãos deixassem o país.

Ninguém espera que a Arábia Saudita, que já está envolvida em uma guerra complicada no Iêmen, dê início a um novo conflito por sua conta. Mas Israel, que travou uma guerra contra o Hizbullah em 2006, vem expressando crescente preocupação com o crescente arsenal do grupo libanês em sua fronteira norte.

Na sexta-feira (10), o líder Hassan Nasrallah, do Hizbullah, anunciou que a Arábia Saudita havia pedido a Israel que atacasse o Líbano, depois de, essencialmente, sequestrar Hariri.

"Não estou falando de análise, mas de informação", ele disse. "Os sauditas pediram que Israel atacasse o Líbano".

Ele não ofereceu provas de sua afirmação, mas analistas ocidentais e da região concordaram em que, dados os acontecimentos confusos e inesperados e os protagonistas imprevisíveis, não era possível descartar de todo esse cenário.

GUERRA AO HIZBULLAH

As autoridades israelenses, de sua parte, vêm prevendo publicamente uma nova guerra contra o Hizbullah, embora prometam fazer o possível para postergá-la.

"Há pessoas na região que gostariam que Israel fosse à guerra com o Hizbullah e que colocasse vidas israelenses em jogo em um conflito que beneficiaria os sauditas", disse Ofer Zalzberg, analista do International Crisis Group, em Jerusalém. "Não há interesse nisso por aqui".

O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu há muito vê o Irã como maior inimigo de Israel, como potencial ameaça nuclear e como adversário estratégico que está tentando converter a Síria pós-guerra em ponto de origem de ataques a Israel ou em um corredor para transferir mísseis e outras armas ao Hizbullah no Líbano.

Por isso, os esforços renovados da Arábia Saudita para combater a influência iraniana no Líbano atraíram alguns aplausos em Jerusalém. Mas muitos israelenses temem que as ações agressivas do príncipe herdeiro saudita arrastem Israel a uma guerra que o país não deseja.

Daniel Shapiro, antigo embaixador norte-americano a Israel, disse que Israel e a Arábia Saudita estavam buscando objetivos semelhantes, mas com velocidades e níveis de competência muito diferentes.

"Não estou certo de que estejam alinhados taticamente", disse ele. Salman, acrescentou Shapiro, "parece muito impaciente pelo começo de um confronto".

Não existem sinais de preparativos para a guerra em Israel. O país não está mobilizando tropas em sua fronteira norte e nem convocou reservistas, e Netanyahu não ofereceu qualquer indicação de que veja um conflito como iminente.

Além disso, os planejadores de guerra de Israel preveem que a próxima guerra com o Hizbullah possa ser catastrófica, especialmente se durar mais do que uns poucos dias. O grupo tem mais de 120 mil foguetes e mísseis, estima Israel, o bastante para aniquilar as defesas antimísseis do país.

Muitos desses mísseis são de longo alcance e têm precisão suficiente para tomar por alvo os edifícios de Tel Aviv e plataformas marítimas de gás natural, além de poder inviabilizar o aeroporto Ben Gurion e devastar edificações históricas em todo o território de Israel.

O Hizbullah, no entanto, tampouco está ansioso por uma batalha contra Israel, de acordo com analistas que estudam de perto a facção militante. A organização continua combatendo na Síria, onde apoia o governo do ditador Bashar al-Assad, e seus recursos estão distendidos por conta dos custos médicos com combatentes feridos e das despesas com benefícios para as famílias dos mortos, disse Giora Eiland, major-general reformado israelense e antigo presidente do conselho de segurança nacional de Israel.

"O Hizbullah é hoje uma organização em profunda crise econômica", disse Eiland. "Mas, ao mesmo tempo, quanto mais fracos eles se tornam, mais dependem da assistência iraniana —o que significa que podem ter de cumprir ordens do Irã."

E há medo de que os inimigos do Hizbullah busquem reduzir sua influência, agora que está acabando a guerra na Síria —na qual o movimento ganhou influência, poder e armas.

Nasrallah, o líder do Hizbullah, deu a entender na sexta-feira que sua luta na Síria estava quase encerrada. Se o objetivo da Arábia Saudita era forçar o Hizbullah a deixar a Síria, disse ele, "não há problema. Nosso objetivo lá foi atingido. A guerra já quase acabou, de todo jeito".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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