Folha de S. Paulo


Maioria entre pessoas com HIV em país africano, mulheres esperam cura

"Eu vi meus filhos morrerem um a um e não sabia o que era", disse Madeleine Mwiza. Quando descobriu que ela própria e seus três filhos mortos tinham Aids, foi cruelmente espancada pelo marido. Mwiza tinha 21 anos e já era mãe de cinco.

"Quando contei ao meu marido, ele me bateu e expulsou de casa", relembra. O episódio ocorreu em 2003. Foram dois meses até que pudesse voltar a pisar em casa. "A mentalidade aqui é a de não ver a pessoa com Aids como alguém normal."

Flávio Forner/Folhapress
Mulher congolesa soropositiva faz curso de corte e costura no hospital Heal Africa, em Goma
Mulher congolesa soropositiva faz curso de corte e costura no hospital Heal Africa, em Goma

A jovem buscou a ajuda do pastor da igreja adventista na sua comunidade, Katindo, na cidade de Goma, no leste do país, para que pudesse convencer seu marido a aceitá-la de volta. Na sua fé, casamento é para a vida inteira.

O choque foi descobrir que contraíra o vírus da Aids de seu primeiro e único parceiro sexual. O marido escondia os medicamentos e havia quatro anos tomava os antirretrovirais secretamente. "Ele sabia que estava doente e nunca me contou", lamenta. Marido e mulher ainda vivem na mesma casa, mas nunca se reconciliaram.

Mwiza é uma das muitas na República Democrática do Congo que sonham com a cura da Aids para poder retomar suas vidas e escapar da violência doméstica.

Em uma sociedade patriarcal e misógina, as mulheres, apesar de serem as responsáveis pela criação dos filhos, por cuidar da casa e garantir a sobrevivência da família, são as últimas a se alimentar quando há pouco o que servir no prato. Quando doentes, pagam um alto preço pois são estigmatizadas pelos maridos e relegadas ao ostracismo.

"Espero que um dia descubram a cura e que a Aids desapareça", disse Mwiza.

Enquanto a cura não chega, ela vai duas vezes por semana ao hospital Heal Africa para repor seu estoque de antirretrovirais e participar de sessões de psicoterapia e apoio às mulheres soropositivas. O centro de saúde se tornou referência na província de Kivu do Norte no tratamento de mulheres vítimas de violência e oferece o coquetel.

Hoje, ela se tornou voluntária do programa de Aids do Heal Africa e apoia as novas pacientes. "A primeira reação é sempre a de rejeição."

As mulheres são a maioria das infectadas no país, segundo Dados do Programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS) de 2016. Estima-se que 210 mil sejam soropositivas, em um universo de infectados que, calcula-se, fique entre 290 e 450 mil.

A prevalência do vírus em mulheres congolesas é o dobro daquela entre homens. As mortes também são em maior número entre os indivíduos do sexo feminino.

A ONU estima que 42% das pessoas que têm o vírus no país façam o tratamento com regularidade. O governo congolês desenvolveu um plano de emergência cuja meta é chegar a 2018 com 73% da população infectada tomando antirretrovirais.

Na África Ocidental (que inclui países como Congo, Costa do Marfim, Burkina Fasso, República Centro-Africana, Libéria e Mali), 36% dos adultos fazem tratamento. Por ano, morrem 310 mil pessoas, e uma média de 370 mil novos casos são registrados. Nessa região, 6,5 milhões de pessoas vivem com Aids.

"O problema da Aids para as mulheres é que os maridos as culpam por terem sido infectadas", diz Miyisa Kyakimwa, enfermeira da organização Médicos sem Fronteiras (MSF) que atua em parceria com o Heal Africa no tratamento de soropositivos. "É uma sociedade que discrimina a mulher. Uma vez que a mulher tenha Aids, o parceiro a expulsará de casa."

Desde que começou o programa da MSF, em agosto de 2015, mais de 3.000 pessoas foram beneficiados com os medicamentos. Kyakimwa explica que um dos eixos do programa é evitar que os pacientes abandonem o tratamento, pois 70% são "muito, muito pobres" e, não raro, vivem longe e não conseguem buscar o coquetel. As mulheres são a maioria dos pacientes, em todas as faixas etárias.


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