Folha de S. Paulo


Análise

Sauditas precisavam de 'sacudida' promovida por príncipe herdeiro

Para se entender a confusão que está ocorrendo na Arábia Saudita hoje, é preciso começar pelo mais importante fato político sobre esse país: a força política dominante lá nas últimas quatro décadas não foi o islamismo, o fundamentalismo, o liberalismo, o capitalismo ou o EI-smo.

Foi o Alzheimer.

O atual rei do país tem 81 anos. Ele substituiu um rei que morreu aos 90, que substituiu um rei que morreu aos 84. Não que nenhum deles tenha introduzido reformas.

Hamad I Mohammed - 24.out.2017/Reuters
O príncipe saudita Mohammed bin Salman, 32, assiste a evento econômico em Riad
O príncipe saudita Mohammed bin Salman, 32, assiste a evento econômico em Riad

É que em uma época em que o mundo experimentou tantas mudanças em alta velocidade em tecnologia, educação e globalização, esses sucessivos monarcas sauditas acharam que reformar seu país a 10 km/h era rápido o suficiente —e os altos preços do petróleo compensariam esse ritmo lento.

Não funciona mais. Cerca de 70% da Arábia Saudita têm menos de 30 anos, e aproximadamente 25% deles estão desempregados. Além disso, 200 mil outros estudam no exterior e cerca de 35 mil destes —homens e mulheres— voltam para casa todo ano com diplomas, procurando empregos significativos, para não falar em algo divertido para fazer além de ir à mesquita ou ao shopping center.

O sistema precisa desesperadamente criar mais empregos fora do setor petrolífero, onde a renda saudita não é mais o que era, e o governo não consegue deixar de comer suas economias para comprar estabilidade.

Este é o pano de fundo do jogo de poder desta semana, ousado mas impiedoso, do filho de 32 anos do rei Salman —o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, conhecido por suas iniciais, MBS.

Entrevistei MBS duas vezes. Ele é um jovem apressado. Achei autêntica sua paixão por reformas, significativo seu apoio aos jovens de seu país e interessante sua tese de aplicar reformas radicais na Arábia Saudita.

De fato, há duas coisas que posso dizer com certeza sobre ele: é muito mais McKinsey que wahabita —muito mais um triturador de números que um propagador do Corão. E se ele não existisse o sistema saudita precisaria inventá-lo. Alguém para dar uma sacudida no lugar.

Mas eis o que eu não sei com certeza: onde termina seu impulso por reformas rápidas e começa seu impulso autocrático de tomar todo o poder? Depois que MBS prendeu diversos príncipes sauditas, empresários de mídia e bilionários sob a acusação de "corrupção", o presidente Donald Trump tuitou seu aplauso, dizendo: "Alguns dos que eles estão tratando duramente estiveram 'ordenhando' seu país há anos!"

Só pude rir ao ler esse tuíte. Ouvir que príncipes sauditas foram presos por "corrupção" é como ler que Donald Trump demitiu sete ministros do gabinete "por mentirem". Você sabe que deve ser alguma outra coisa.

Trump obviamente não entendeu a história no ano passado de que MBS comprou impulsivamente um iate quando estava em férias no sul da França —ele simplesmente chamou sua atenção no porto— de seu dono russo, por US$ 550 milhões (cerca de R$ 1,8 bilhão).

Esse dinheiro saiu do seu porquinho de poupança? Economias de sua barraca de limonada em Riad? Do plano de previdência do governo saudita?

Eu levanto essa questão porque quando alguém faz tantas mudanças radicais de uma vez, e faz tantos inimigos de uma vez, como fez MBS, sua roupa tem de estar muito limpa. Veja o que MBS está fazendo ao mesmo tempo:

Para acelerar a tomada de decisões, ele está reformulando o Estado saudita —de uma ampla coalizão familiar onde o poder é compartilhado e alternado entre sete grandes famílias e as decisões são tomadas por consenso— em um Estado governado por uma única linhagem familiar. Não é mais a Arábia Saudita. Está se tornando a "Arábia Salmanita".

Ao mesmo tempo, MBS está mudando a base de legitimidade do regime, encerrando a "era 1979". Em 1979, no rastro da tomada do local mais santo do islã em Meca por um pregador saudita ultrafundamentalista que afirmava que a família Saud não era islâmica o suficiente, a família governante saudita —para reforçar sua legitimidade religiosa— deu uma virada religiosa acentuada e começou a exportar seu islamismo sunita wahabita puritano, construindo mesquitas e escolas de Londres à Indonésia.

Foi um desastre para o mundo árabe/ muçulmano, produzindo rebentos como a Al Qaeda e o Estado Islâmico e retardando a educação árabe e o progresso das mulheres.

MBS prometeu dar origem a um islamismo saudita mais moderado, começando por conter sua polícia religiosa e permitir que as mulheres dirijam carros. Isto é muito importante. Ele está desafiando as pessoas a julgar seu governo não pela piedade, mas pelo desempenho, não sobre o Corão, mas sobre os indicadores chaves de desempenho: desemprego, crescimento econômico, habitação e saúde pública.

Mas ele está substituindo o wahabismo como fonte de solidariedade por um nacionalismo saudita mais secular, que tem um forte teor anti-Irã/persa/xiita. E isso o está levando a alguns lugares perigosos.

Para confrontar o Irã, MBS fez o primeiro-ministro sunita do Líbano, Saad al-Hariri, deixar o cargo no sábado (4) enquanto visitava Riad, e culpou o Irã e seus aliados xiitas por tornarem o Líbano ingovernável —e por um ataque de míssil do Iêmen. É excesso de poder, e não há ninguém perto dele para lhe dizer isso.

Eu temo que os que pedem para que MBS seja mais agressivo ao confrontar o Irã (cuja influência regional maligna precisa ser contrabalançada) —como os Emirados Árabes Unidos, Trump, Jared Kushner e Bibi Netanyahu— forçarão MBS a uma guerra no exterior e em casa ao mesmo tempo, e podemos ver a Arábia Saudita e toda a região sair do controle ao mesmo tempo. Temam.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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