Folha de S. Paulo


Com porte de arma proibido, agressor doméstico burla a lei nos EUA

Em 1996, depois de um empurrão do senador Frank Lautenberg, de Nova Jersey, o Congresso dos EUA tornou ilegal que qualquer pessoa condenada por agressão doméstica —mesmo numa infração menor— comprasse armas de fogo.

Lautenberg, que morreu em 2013, gostava de dizer que a lei foi "dedicada ao simples princípio de que os que batem em mulheres e abusam de crianças não devem ter armas".

Mas nas duas décadas que se seguiram uma grande porcentagem de perpetradores de assassinatos em massa e outros crimes violentos tiveram problemas com a justiça por causa de agressão conjugal —e tiveram pouca dificuldade para adquirir arsenais mortíferos.

No domingo (5), Devin Kelley entrou para a fraternidade, ao abater 26 pessoas em uma igreja no Texas com um rifle AR-15 em estilo militar, que ele comprou dois anos depois que a Força Aérea o condenou por espancar sua mulher.

Na segunda-feira (6), a Força Aérea admitiu que o crime de violência doméstica de Kelley, algo que claramente deveria tê-lo desqualificado para adquirir uma arma de fogo, não tinha sido inserido no banco de dados do Centro Nacional de Informação Criminal. O órgão prometeu conduzir uma ampla revisão de todos os casos para determinar se foram adequadamente registrados.

"Estou profundamente perturbado —na verdade, indignado— porque essa condenação por violência doméstica aparentemente nunca foi relatada, e o que me preocupa igualmente é a possibilidade de que seja apenas um exemplo de falta de registro pelo Departamento da Defesa", disse o senador democrata Richard Blumenthal, de Connecticut, em uma entrevista na noite de segunda-feira.

A aparente falha do sistema de controle de ficha criminal no caso de Kelley mostra mais uma vez que um programa de computador só é bom na medida em que se inserem informações nele.

A chacina na Universidade Virginia Tech em 2007 chamou a atenção para as falhas do sistema depois que se revelou que o atirador, Seung-Hui Cho, tinha recebido ordem de um tribunal para se submeter a tratamento de saúde mental, mas essa ordem judicial não foi encaminhada ao banco de dados de fichas criminais, falha que pode ter permitido que ele comprasse seu arsenal.

Depois desse erro, o Congresso fez uma negociação delicada com a Associação Nacional do Rifle e aprovou legislação que oferecia aos Estados verbas para acrescentar registros de saúde mental ao sistema de verificação.

Uma atualização de violência doméstica poderá ser o próximo passo, especialmente para violadores que façam parte ou tenham sido desligados das Forças Armadas. Um repositório on-line de registros ativos mantido pelos Serviços de Informação Judicial Criminal do FBI (polícia federal americana) mostra que o Departamento de Defesa havia relatado apenas um caso de violência doméstica até 31 de dezembro.

Embora a lei federal enumere 11 critérios que impediriam uma pessoa de comprar uma arma —inclusive por ser objeto de uma ordem protetora por violência doméstica ou condenação por violência doméstica—, apenas um punhado dos 11 mil casos relatados entre militares estavam em uma categoria: dispensa desonrosa.

Blumenthal, que há muito propunha expandir as leis de segurança com armas, disse que se os registros no repositório on-line forem exatos, seria um "grande lapso".

Uma revisão do inspetor-geral em 2015 denunciou o nível de conformidade do Departamento da Defesa com a Emenda Lautenberg, como é conhecida a lei de 1996, mas se concentrou em rastrear atuais e futuros membros dos serviços, e não em como os casos de violência doméstica entre militares eram registrados no banco de dados federal.

Laura Cutilletta, diretora-jurídica do Centro de Direito Giffords para Prevenção da Violência Armada, disse que seu grupo revisou diversos documentos militares referentes à conformidade com a Emenda Lautenberg e não encontrou um procedimento para relatar condenações ao FBI.

"Claramente, eles têm um processo", disse ela, mas "só estão enviando as dispensas desonrosas".

Especialistas que investigam assassinatos em massa dizem que um histórico de violência doméstica é muitas vezes uma pista perdida. Um exemplo: o tiroteio em junho de 2016 na boate Pulse em Orlando, na Flórida.

A mulher do atirador Omar Mateen o descreveu em uma entrevista ao "New York Times" como uma pessoa que se irritava facilmente, a espancava e levava uma vida secreta.

"Vimos diversas vezes esse padrão nesses assassinatos em massa famosos, é uma linha muito comum em que a pessoa tinha um histórico particular de violência doméstica", disse Billy Rosen, vice-diretor-jurídico da associação Everytown for Gun Safety (todas as cidades pela segurança das armas). "Um histórico desse tipo particular de conduta pode realmente demonstrar que alguém tem propensões perigosas e não deve ter autorização para possuir armas."

Usando dados do FBI e outras informações disponíveis publicamente, a Everytown analisou assassinatos em massa nos EUA ocorridos entre 2009 e 2016, definindo um assassinato em massa como um em que quatro ou mais pessoas foram mortas a tiros, não incluindo o atirador. De 156 assassinatos que se encaixam nessa categoria, 54% foram "relacionados à violência doméstica ou familiar", concluiu a análise.

No caso de Kelley, ele entrou em um acordo pré-julgamento —uma confissão de culpa em troca de limitar sua sentença a 18 meses de prisão. Ele foi condenado a um ano de confinamento, sofreu redução na patente de aviador e foi dispensado por má conduta, segundo Don Christensen, um coronel aposentado que era promotor-chefe da Força Aérea na época.

Christensen disse acreditar que o caso de agressão impedia Kelley de possuir uma arma sob dois quesitos da lei federal.

O primeiro foi a confissão de culpa em um crime com punição máxima de mais de um ano de prisão; a agressão ao enteado teria recebido no máximo cinco anos de prisão. O segundo, disse ele, foi a emenda Lautenberg.
"A verdadeira história é por que, com essas infrações, Kelley ainda pôde comprar uma arma?", disse Christensen. "Ele claramente não deveria ter conseguido."

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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