Folha de S. Paulo


Casal se refugia na piscina e vê casa ser destruída por incêndio na Califórnia

David McNew - 10.out.2017/Getty Images/AFP
Piscina de uma das casas destruídas pelo fogo no bairro de Foxtail Court, em Santa Rosa, Califórnia
Piscina de uma das casas destruídas pelo fogo no bairro de Foxtail Court, em Santa Rosa, Califórnia

Daniel Pomplun acordou assustado. Era 1h30 da segunda-feira (9), e ele estava ouvindo o crepitar de chamas. Percebeu que não havia eletricidade, então se levantou e foi para a janela.

Ele e sua mulher, Cindy, estavam dormindo e não ouviram os avisos. Os moradores de Santa Rosa, Califórnia, já estavam deixando a região havia mais de três horas, enquanto um incêndio se aproximava rapidamente, ganhando força sem parar. O brilho vermelho que ele viu pela janela mostrou a Daniel, 54, que já era tarde demais para fugir. O incêndio já estava ali.

"Cindy! Acorde!", ele gritou, sacudindo sua mulher. "Temos que sair correndo!"

Eles se vestiram às pressas, pegando as roupas que estavam mais à mão: no caso de Cindy, uma camiseta e calça cargo, e no de Daniel, calça e blusa de moletom dos Minnesota Vikings. Agarraram as chaves do carro e correram para a porta da casa.

Os Pompluns moravam havia 17 anos num sobrado verde na zona rural de Santa Rosa. Há apenas uma rua que sai de seu bairro. Quando Daniel encontrou a maçaneta e abriu a porta, viu que o fogo já tinha atravessado a rua de acesso à casa. O único caminho pelo qual poderiam fugir estava bloqueado pelas chamas que avançavam na direção deles.

A escolha tinha sido feita para eles.

"Vamos ficar aqui enquanto for possível", Daniel orientou Cindy, lembrando-se de um programa de TV sobre incêndios que ele havia visto e que sugeria que é mais seguro estar dentro de casa quando há chamas altas avançando do lado de fora do que andar a pé entre as chamas. "Quando não der mais, vamos correr."

Ele pensou que, se a casa pegasse fogo e não houvesse para onde irem, eles poderiam ir correndo até a piscina, onde talvez conseguissem se abrigar até o incêndio acabar.

As autoridades do norte da Califórnia ainda estão avaliando os prejuízos provocados pela onda mais devastadora e letal de incêndios a atingir o Estado na história moderna. Com pelo menos 17 incêndios ainda ardendo na sexta-feira, as autoridades dizem que milhares de pessoas ainda estão deslocadas, e há pelo menos 35 mortes confirmadas.

Mais de 8.900 km² de terras foram devastadas por incêndios nos últimos sete dias, e os incêndios destruíram áreas residenciais, forçando os moradores a abandonar suas casas cheias de seus pertences.

Equipes de buscas já começaram a revistar as cinzas e os destroços de casas queimadas, procurando os corpos de pessoas que não conseguiram escapar.

"Todos sofremos um trauma aqui", disse a jornalistas na sexta-feira o prefeito de Santa Rosa, Chris Coursey. "Vai demorar para nos recuperarmos deste incidente."

*

Antes de partir, os Pompluns precisavam encontrar suas gatinhas.

Sishi, sua gata malhada de 10 anos de idade, estava deitada no solário, mas eles não conseguiam encontrar Tabitha, a gatinha cinza listrada. Daniel e Cindy correram para os fundos da casa, em direção ao galpão onde os gatos frequentemente dormiam, mas estava em chamas.

Eles passaram a meia hora seguinte na janela do solário, vendo seu bairro inteiro pegar fogo e ser reduzido a escombros. Pouco depois, a garagem deles pegou fogo, e a fumaça começou a penetrar na casa por um vão no segundo andar.

O escuro era total, exceto pelo brilho avermelhado que se aproximava. O solário já estava cheio de fumaça, e restava menos de meio metro de ar. Era por volta de 2h da madrugada e já passava da hora de irem embora.

Daniel levou os passaportes deles, uma garrafa de água e um par de toalhas. Cindy carregou a gata nos braços, apertando-a contra seu peito. Eles abriram a porta do solário e começaram a correr.

À esquerda, viram as chamas em cima do telhado. À direita, pontos vermelhos que salpicavam os morros distantes pareciam estar se aproximando deles aos saltos. A gatinha se mexeu e desalojou uma pilha de cinzas. Sishi escorregou para fora dos braços de Cindy, pulou para o chão e desapareceu na escuridão.

A grama debaixo dos pés deles estava preta e crocante. O ar estava frio e cheio de fumaça.

Eles chegaram à beira da piscina e entraram cuidadosamente. Quando estavam mergulhados na água até os ombros, cobriram as cabeças com toalhas molhadas.

As chamas dançaram pelo telhado e desceram pelos lados da casa.

Então começou um pipocar de pequenas explosões, quando as chamas atingiram os cem cartuchos de espingarda e rifle que havia em um dos quartos do andar superior. O carvalho que crescia logo ao norte da piscina virou um buquê de fogo. Depois o pinheiro ao oeste, também. As chamas subiram pelas duas árvores altas, lambendo a escuridão.

Cindy e Daniel ficaram o mais longe possível de sua casa em chamas, mas não queriam ir até a parte da piscina onde não dava mais pé.

Ezra Shaw - 11.out.2017/Getty Images/AFP
Casa fica destruída por fogo de incêndios florestais que atingem a região de Napa, na Califórnia
Casa fica destruída por fogo de incêndios florestais que atingem a região de Napa, na Califórnia

Eles já estavam na piscina havia meia hora e o fogo atingira o ponto máximo à sua volta. A parede dos fundos da casa estava totalmente em chamas, jogando calor forte e cruel contra eles. Suas cabeças estavam ardendo, seus rostos estourando em bolhas. Enquanto isso, seus corpos tremiam incontrolavelmente na água fria.

Nos piores momentos, eles mergulharam totalmente na água fria, segurando a respiração pelo maior tempo possível e subindo apenas por instantes para respirar.

Eles falaram das coisas que estavam perdendo, vendo um cômodo após outro de sua casa de cinco quartos ser consumido pelo fogo. Foram tomando consciência de tudo que não poderiam recuperar nunca: as fotos, as recordações da faculdade, os suvenires das férias em família. Mas, durante a maior parte do tempo que passaram na água, a adrenalina os impediu de pensar em qualquer coisa senão o esforço para continuar vivos.

A casa desabou, e o fogo seguiu adiante. Onde antes estivera a garagem, restavam os carros derretidos e destruídos de Daniel e Cindy. Um esquilo solitário que sobrevivera desceu de um galho de árvore que resistiu incólume e chegou perto do que restava da casa dos Pomplun, mas então retrocedeu. Daniel sugeriu a Cindy que talvez fosse hora de eles, também, saírem de seu refúgio.

Enquanto os poucos pássaros remanescentes cantavam, saudando o nascer do sol, Cindy e Daniel saíram lentamente da água, tremendo. O caminho de concreto ainda estava quente, e as ruínas à sua volta fumegavam. Eles se deitaram juntos, abraçados para se aquecerem, deixando suas roupas penduradas da estrutura metálica restante do que antes tinha sido uma mesa na beira da piscina.

De vez em quando um helicóptero ou avião passava no alto. Daniel então usou pedras para escrever uma mensagem no pátio: "TIREM-NOS DAQUI". Cindy saiu à procura de Sishi e a encontrou escondida debaixo de um arbusto. Ela foi para o colo de sua dona por alguns instantes, mas então se escondeu novamente debaixo do arbusto e não saiu mais.

Daniel decidiu que era hora de caminhar, mas os dois precisavam encontrar sapatos. Olhando em volta, ele viu uma única casa que parecia ter escapado ilesa. A porta de tela dos fundos estava aberta, então eles entraram. Encontraram dois chinelos de dedo que cabiam neles e um chapéu para proteger Cindy do sol. Pegaram algumas folhas de papel e uma caneta e colocaram algumas garrafas de água num saco de papel.

Daniel deixou um bilhete no chão, pedindo desculpas pelo que haviam feito e prometendo devolver as coisas. Por volta do meio-dia eles começaram a andar, tendo antes mudado a mensagem de pedras diante de sua casa para "SAÍMOS ANDANDO".

Uma picape branca passou por eles. Um grupo de pessoas estava voltando ao bairro para checar a situação de amigos que moravam por perto. Um quilômetro adiante, Cindy e Daniel encontraram um auxiliar de xerife.
"Venham", o policial gritou a eles, "eu levo vocês para um abrigo."

Eles passaram o resto do dia sentados em volta de uma mesinha metálica dobrável em um abrigo montado numa escola secundária de Windsor. Foram levados ao hospital para checar se haviam inalado fumaça e receber receitas de pomadas para suas queimaduras. Tentaram pensar como fariam para conseguir telefones novos.

Eles passaram aquela noite no abrigo. Quando as pessoas andavam sobre o piso de parquete, o assoalho fazia um ruído alto que parecia algo pipocando, que os lembrava do som do carvalho queimando.
"Demoramos um tempão para pegar no sono aquela primeira noite", contou Daniel.

A empresa onde ele trabalha como engenheiro de software os ajudou a encontrar alojamento temporário e um carro emprestado, para que pudessem ir ao banco e conseguir novos cartões de crédito, além de um oftalmologista para encomendar óculos novos. Eles já preencheram os documentos do seguro relativos à perda de sua casa e dos carros.

Daniel e Cindy já começaram a discutir qual será o próximo passo: ficar onde estavam e reconstruir sua casa? Mudar-se para outro lugar? Eles não sabem.

Eles acham que sua gatinha Tabitha não deve ter sobrevivido. Imaginam que ela tenha morrido no incêndio do galpão. Mas ligaram para o departamento de controle de animais, com a esperança de que Sishi ainda esteja lá fora, aninhada sob o arbusto.

Tradução de CLARA ALLAIN


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