Folha de S. Paulo


Opinião

Artistas da música country deveriam se distanciar do lobby pró-armas

Defendo há 20 anos a causa do controle de armas. A cada vez que falo sobre a necessidade de leis mais severas quanto às armas, recebo uma profusão de novas ameaças.

Há sempre muitas afirmações simplórias do tipo "seu pai teria vergonha de você" [a autora é filha de Johnny Cash (1932-2003), ícone da música country], e bobagens sexistas, mas também ameaças muito mais explícitas à minha segurança e à de minha família.

David Becker - 1.out.2017/Getty Images/AFP
Chapéu de caubói fica para trás após ataque a tiros a festival de música country em Las Vegas no dia 1º
Chapéu de caubói fica para trás após ataque a tiros a festival de música country em Las Vegas no dia 1º

No ano passado, cantei no Concert Across America to End Gun Violence, com Jackson Browne, Eddie Vedder, Marc Cohn e o Harlem Gospel Choir, e recebemos ameaças de morte. Pessoas queriam nos matar porque desejávamos pôr fim à violência armada. É esse o ponto a que chegamos, nos EUA de 2017.

Ao longo das últimas décadas, a Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês, principal lobby pró-armas dos EUA) vem nutrindo uma aliança com os artistas da música country e seus fãs. É algo visível na NRA Country, que promove os artistas country apegados à causa filosófica, e talvez ao poderio econômico, da associação, com a perniciosa assinatura "vamos celebrar nosso estilo de vida".

Essa pátina de respeitabilidade criada por meio de uma máquina de relações públicas mascara algo profundamente sinistro e fortemente destrutivo. Não há outra maneira de expressar o ponto: a NRA financia o terrorismo doméstico,

Existe um governo paralelo no mundo da venda de armas, e as pessoas que escrevem os regulamentos sobre armas são as mesmas que lucram com a venda delas. A NRA gostaria que as coisas continuassem como estão.

As leis que temos em vigor para impedir a obtenção de armas de categoria militar por cidadãos que sofrem de doenças mentais são risíveis, sob o padrão de qualquer sociedade civilizada. E até mesmo essas restrições patéticas seriam removidas, se a NRA conseguisse o que deseja.

Esta semana mesmo, a Câmara dos Deputados deveria votar um projeto de lei que afrouxa as restrições à venda de silenciadores e balas capazes de perfurar blindagem (a votação foi adiada indefinidamente depois do massacre em Las Vegas ). Não é difícil descobrir como a NRA distribuiu milhões de dólares ao Congresso a fim de influenciar a votação.

Se a lei proposta tivesse sido aprovada antes do homicídio em massa do domingo, em Las Vegas, e os fuzis encontrados no quarto do atacante estivessem equipados com silenciadores, não é difícil presumir que o total de mortes teria sido muito mais alto. As pessoas que fugiram do show e sobreviveram o fizeram porque ouviram o som dos disparos. Nada disso importa para a NRA.

Incentivo os artistas da música country e de outros gêneros de música de raiz norte-americana a abandonarem o silêncio. Já não basta que você se distancie silenciosamente. As leis que a NRA deseja aprovar são ameaça a você, aos seus fãs e aos shows e festivais que gostamos.

Há coisas demais em jogo para que o conluio com a NRA continue a ser acatado. É possível separar as meadas do patriotismo das leis frouxas de controle de armas, que a organização entrelaçou com tamanha malevolência. As duas coisas não são iguais.

Sei que aqueles que se pronunciam sofrem intimidação. É assim que a NRA opera. Nem todo mundo gostará que você assuma uma posição. Mas não se incomode com isso. Haverá pessoas que queimarão seus discos, ou pedirão de volta o dinheiro de ingressos para seus shows.

Que seja. Encontre a força da convicção moral, mesmo que isso tenha custo —e terá. Não permita que essas pessoas o intimidem ou calem. É nisso que reside o poder da NRA —no silêncio das vozes racionais e na apatia daqueles que poderiam confrontar o poder com a voz da verdade.

O momento atual na história dos EUA não pode ser encarado em silêncio. De acordo com a PolitiFact, entre 2005 e 2015 cerca de 300 mil pessoas foram mortas com o uso de armas de fogo. É quase o equivalente à população de Pittsburgh. O pesar que aflige as famílias atingidas é infindo.

Aqueles de nós que ganham a vida na "torre da canção", na eloquente expressão de Leonard Cohen, precisam fazer com que suas vozes sejam ouvidas.

A NRA vai continuar tentando seguir o roteiro que eles criaram para os momentos posteriores a ataques armados: dirá que não devemos "politizar" a carnificina em Las Vegas ao falar em controle de armas em um momento como esse, e que a questão não é de armas, mas de pessoas, e que mais pessoas deveriam andar armadas, para proteção. Basta.

Patriotismo e acreditar em leis fortes de controle de armas não são uma antítese. Precisamos de leis sensatas para as armas, e espero que meus colegas de moradia na torre da canção se unam a mim para lutar por isso. Unidos, podemos abafar a intimidação.

ROSANNE CASH é cantora e compositora, e seu mais recente álbum é "The River and the Thread".

Tradução de PAULO MIGLIACCI

Editoria de Arte/Folhapress

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