Folha de S. Paulo


Chavismo oculta dados e cria cenário de apagão estatístico na Venezuela

Ariana Cubillos - 23.ago.2017/Associated Press
Moradores fazem fila em frente a supermercado de Caracas à espera de produtos subsidiados
Moradores fazem fila em frente a supermercado de Caracas à espera de produtos subsidiados

O cheiro de corpos em decomposição toma conta das calçadas arborizadas que circundam o principal necrotério de Caracas logo nas primeiras horas da manhã.

Nos dias mais frescos, o odor se ameniza; nos mais quentes e úmidos, torna-se quase insuportável.

Localizado em um bairro de classe média alta, o Instituto Médico Legal de Bello Monte recebe os corpos daqueles que foram mortos na região metropolitana da cidade. Com o aumento da violência e a manutenção precária das câmaras frias, os cadáveres sofrem os efeitos do clima tropical.

"Hoje está fraco, não estou nem sentindo. Acho que me acostumei", diz a jornalista Sandra Guerrero, que bate ponto nos arredores do necrotério há mais de uma década.

A repórter e seus colegas buscam não só as histórias dos crimes que fazem Caracas ter a fama de capital mais violenta do mundo. Sua principal função é contabilizar diariamente o número de corpos que dão entrada na morgue.

"O governo não divulga nenhum número, nenhuma estatística, nenhum boletim há mais de dez anos", afirma ela. "Ou fazemos esse trabalho, ou nunca se saberia quantas pessoas são assassinadas nesta cidade todos os anos", diz.

Yan Boechat/Folhapress
Parente de vítima de assassinato é entrevistado no necrotério de Caracas; jornalistas contam mortos
Parente de vítima de assassinato é entrevistado no necrotério de Caracas; jornalistas contam mortos

O périplo interminável dos jornalistas caraquenhos em torno dos cadáveres é uma das maneiras que a sociedade venezuelana encontrou para tentar saber o que se passa em um país que há anos tornou ilegal a divulgação de qualquer dado oficial.

Na Venezuela de hoje, não se sabe o número de nascimentos, mortes, estudantes, vítimas de acidentes de trânsito, assassinatos, inflação ou produção de alimentos.

SÓ ESTIMATIVAS

"Com raras exceções, basicamente todos os números que temos são estimativas", diz Francisco Allen, gerente de Análise Econômica da Datanálisis, uma das principais consultorias. "Quando conseguimos algum dado oficial, é como um tesouro."

Em maio, a recém-empossada ministra da Saúde, Antonieta Caporale, fez algo quase inimaginável para para os padrões venezuelanos: divulgou os boletins epidemiológicos de todo o ano de 2016.

"Foi uma correria só. Todo mundo começou a se ligar, a mandar mensagem e a baixar os dados. Era ouro puro, parecia até ação de sabotagem, como eles gostam de dizer", conta o epidemiologista e ex-ministro da Saúde (1997-1999), José Félix Olleta.

Os números mostravam o que os médicos estavam percebendo no dia a dia dos hospitais, mas não conseguiam contabilizar. A mortalidade infantil havia crescido 30% em relação ao ano anterior, a materna, mais de 65%, e os casos de malária haviam praticamente dobrado.

O ato da ministra teve a consequência esperada num regime como o da Venezuela: ela foi demitida. Virou diretora do Hospital Universitário de Caracas, um dos maiores e mais problemáticos do país.

GUERRA MIDIÁTICA

O "apagão estatístico" venezuelano é uma estratégia de Estado. Vivendo sua pior e mais profunda crise desde que o ex-presidente Hugo Chávez (1954-2013) assumiu o poder em 1999, a revolução bolivariana comandada por Nicolás Maduro resolveu partir para o ataque em uma guerra midiática sem trégua.

Nos canais estatais, o governo faz questão de reforçar a ideia de que o país é vítima de uma trama internacional para destruir o projeto de socialismo do século 21 implementado por Chávez.

Ao mesmo tempo em que venera o antigo presidente, a publicidade estatal mostra que, depois de quase dois anos, o país está saindo da crise de desabastecimento. Há alguns dias, as televisões abertas do país entraram em cadeia nacional para mostrar o desembarque de 30 mil toneladas de farinha de trigo que haviam chegado da Rússia.

Paralelamente, organizações não governamentais, consultorias e especialistas têm se dedicado a fazer suas próprias estatísticas. Os números são imprecisos e, não raro, enviesados.

"A verdade é que estamos na mais completa escuridão, não temos ideia do que acontece", diz Nelmary Diaz, a gerente de programas de uma ONG dedicada a auxiliar jovens mulheres a se proteger contra a gravidez indesejada.

"O que estamos fazendo é ouvir o que as pessoas dizem quando as atendemos e tentar suprir as carências", afirma. "Não temos ideia da real dimensão dos problemas, então fazemos o que achamos ser certo. Não há como ter muito planejamento", conta.


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