Folha de S. Paulo


Análise

Trump diz o óbvio na ONU, com ênfase para auditório

Lucas Jackson/Reuters
O presidente americano, Donald Trump, antes de seu discurso na ONU
O presidente americano, Donald Trump, antes de seu discurso na ONU

O trecho mais midiático do discurso de Donald Trump na ONU é de grande obviedade, mas dita com palavras e ênfase típicas de animador de auditório —o papel em que se sai melhor—, o que inevitavelmente elevou-o às manchetes no mundo inteiro.

É óbvio que os Estados Unidos, como disse Trump, não teriam alternativa senão "aniquilar" a Coreia do Norte, se Kim Jong-un atacar os EUA ou seus aliados.

Se os EUA entraram em guerra com o Japão, depois que este atacou Pearl Harbour; se até um presidente mais moderado do que Trump, como George Walker Bush, invadiu o Afeganistão, depois dos atentados terroristas às Torres Gêmeas e ao Pentágono, não revidar vigorosamente a um ataque norte-coreano desmoralizaria não só Trump mas o seu país também.

É igualmente óbvio que o revide não significará a aniquilação da Coreia do Norte. O secretário de Defesa de Trump, o general Paul Mattis, já havia dito, pouco antes do discurso do chefe, que os Estados Unidos têm uma opção militar contra Pyongyang que não poria a Coreia do Sul em risco de um contra-ataque. Não deu detalhes, mas é razoável supor que o Pentágono pensa em "aniquilar" as armas de destruição em massa que os norte-coreanos possuem, mas não o país.

Postas à mesa as cartas norte-americanas, qual a resposta de Kim Jong-Un? Se as crises se mantiverem no território da racionalidade, o ditador norte-coreano não dará motivo para a retaliação americana.

Vale a avaliação que fez recentemente para Guilherme Magalhães, desta Folha, o dissidente norte-coreano Kim Heung-kwang, radicado em Seul: "Ele (o ditador) está com 33 anos. Tem menos dinheiro do que Bill Gates, mas leva uma vida mais luxuosa. Não acho que ele se arriscaria a deixar essa vida para iniciar uma guerra que sabe que perderia."

Mas é pouco provável que ameaças o façam abandonar o programa nuclear do país, a melhor defesa contra uma eventual tentativa de forçar a mudança do regime.

Conclusão: a continuidade da guerra de palavras e do lançamento de mísseis, com o consequente risco de um acidente qualquer que provoque "fogo e fúria" sobre a Coreia do Norte, conforme ameaça anterior de Trump.

Tudo somado, o discurso de Trump é menos ameaçador —por óbvio e repetitivo— em relação à Coreia do Norte e mais em relação ao Irã: ao voltar a atacar o acordo de 2015 em torno do programa nuclear iraniano, Trump desafia um consenso que uniu todas as grandes potências, inclusive os EUA de Barack Obama.

É verdade que no discurso desta terça-feira, o presidente não disse que rasgaria o acordo. Ainda assim, acaba repondo na lista de inquietações um outro programa nuclear, o que não é bom para ninguém.
Por fim, Trump terminou por contradizer as suas críticas ao Irã, à Coreia do Norte e à Venezuela, ao dizer: "Eu sempre ponho a América primeiro, assim como vocês, líderes de seus países, deveriam pôr seus países primeiro".

É exatamente o que Kim Jong-Un, o aiatolá Khamenei e o ditador Nicolás Maduro dizem que fazem. São ditadores, é verdade, mas acham que até suas ditaduras são a melhor maneira de pôr seus países em primeiro lugar. Por que mudar se até Trump os convida a não fazê-lo?


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