Folha de S. Paulo


Crise afunda a psique de venezuelanos, que sofrem com escassez de remédios

Mildred Varela não anda dormindo bem. Até adormece, mas aí começam os sonhos de que houve uma recidiva no câncer que lhe custou a mama esquerda.

Acorda assustada, às vezes chorando. Não raro, demora alguns segundos, minutos até, para se dar conta de que o sonho foi só isso mesmo.

"Tenho escutado as histórias de pessoas com câncer que não conseguem remédios, de gente que morre porque não conseguiu comprar a quimioterapia, que eu fico pensando que tive foi sorte em ter ficado doente há três anos", conta ela, uma engenheira civil de 46 anos que deixou o trabalho desde que se descobriu doente.

Mildred afirma ter quase certeza de que, se precisasse passar por um novo tratamento com quimioterapia, cirurgia e radioterapia, suas chances de sobrevivência seriam muito baixas.

"Naquele momento, quando a escassez de remédios e os serviços de saúde estavam em situação muito, muito melhores que agora, nós gastamos tudo o que tínhamos para que eu fizesse todas as etapas", diz. "Hoje seria impossível."

Yan Boechat/Folhapress
A venezuelana Mildred com a filha, Sofia
A venezuelana Mildred (à esq.) com a filha, Sofia

Há mais ou menos seis meses, Mildred passou a ter crises de ansiedade. Depois vieram os ataques de pânico. Agora, a depressão.

Ela diz não se deixar abater; precisa cuidar da filha Sofia, 8, a quem atribui boa parte da sua recuperação.

Mas chora ao relatar o medo de voltar a adoecer, ao contar as histórias das amigas que perdeu, ao dizer que não tem dinheiro suficiente para comprar o remédio ansiolítico todos os meses, como o médico a recomendou.

"Tomo um quando estou esgotada, para dormir. Às vezes passo uma semana, duas, dormindo mal, até que não aguento e tomo um. Mas acho melhor assim do que não ter o remédio em caso de algum ataque de pânico mais forte."

O psiquiatra Wadalberto Rodríguez tem visto casos como o de Mildred crescerem de forma exponencial nos últimos anos. Presidente da Sociedade Venezuelana de Psiquiatria, Rodríguez diz haver uma explosão nos casos de ansiedade e transtorno do pânico no país.

"Nós não temos números, o governo deixou de publicar os boletins há mais de dois anos, mas o volume de pessoas doentes tem crescido de forma preocupante."

Para ele, o fenômeno tem relação direta com os problemas do país. "Veja, viver aqui tem se tornado extremamente estressante, tanto para as classes mais altas como para as mais baixas."

"Os ataques de pânico e as crises de ansiedade são apenas uma resposta do corpo a essa situação de absoluto estresse, é natural". A depressão é o passo seguinte.

Yan Boechat/Folhapress
A venezuelana Mildred com a filha, Sofia
A venezuelana Mildred, que tem crises de ansiedade e ataques de pânico

Mercedez dos Santos, 29, uma neta de portugueses que trabalha em uma das padarias da família, já não conseguia mais sair da cama.

"Os remédios que eu estava tomando pararam de fazer efeito, eu não era dessas que pensavam em morrer ou algo assim, mas não queria fazer nada, absolutamente nada."

Mercedez começou a ficar deprimida quando percebeu que praticamente todos os seus amigos haviam partido. "Antes as festas de despedida eram alegres, com muita gente. Mas na última, quando uma amiga se foi para o Chile, havia só três pessoas, nos reunimos numa mesa de uma pizzaria. Não teve festa."

Ela também faz planos para ir embora. Depois que passou a receber uma nova droga de uma tia portuguesa, melhorou e agora se prepara para viver em Barcelona.

Mercedez tem sorte. Hoje os pacientes sem condições financeiras para comprar antidepressivos no mercado negro, vindos principalmente da Colômbia ou dos EUA, só têm uma opção no mercado venezuelano.
Independentemente do diagnóstico, venezuelanos com depressão só conseguem ter acesso à sertralina.

"Isso é um problema grave, porque nem sempre o medicamento é o mais indicado a um paciente, e muitas pessoas não se adaptam bem a um determinado princípio ativo", diz Rodríguez, da Sociedade Venezuelana de Psiquiatria.

"Há cinco anos, tínhamos 70 moléculas em mais de 300 apresentações diferentes no mercado, hoje não temos nem uma dúzia", afirma.

ELETROCHOQUE

Mercedez e Mildred passam por situações difíceis, mas seus casos estão distante das dificuldades enfrentadas por pessoas diagnosticadas com doenças psíquicas mais complexas, como a esquizofrenia ou a bipolaridade.

Com o fornecimento irregular dos medicamentos para essas patologias, famílias de poder aquisitivo mais baixo precisam conviver com recaídas e surtos psicóticos mais frequentes.

"Algumas vezes chegamos a uma situação de simplesmente não saber o que fazer, é algo aterrorizante", conta a psicóloga Priscila Gomez (nome fictício), que trabalha em um dos principais hospitais públicos de Caracas e prefere se manter anônima, com medo de represálias do governo.

"Dependendo dos casos, pedimos ajuda a colegas que mantêm clínicas privadas e trabalham com eletrochoque", conta ela. "Sem os remédios, muitas vezes essa é a única forma de tirar um paciente de uma situação limite".

A clínica psiquiátrica El Cedral, uma das mais antigas de Caracas, recebe costumeiramente pacientes enviados pela equipe de Gomez. Em geral, o local não cobra nada pelo tratamento, que hoje custa aproximadamente 5% do valor cobrado há dois anos.

"Antes as sessões de eletrochoque saíam por cerca de US$ 160, hoje não cobramos nem US$ 10, a inflação e a queda do poder aquisitivo das pessoas não nos permitem pedir mais", diz Jesus Cordova, psiquiatra responsável pela aplicação do tratamento e diretor da clínica.

Cordova atribui o aumento da busca pelo eletrochoque à queda da eficácia dos medicamentos que estão sendo usados na Venezuela.

"Não temos quase nenhuma opção, e muitas vezes a que temos são de remédios muito antigos, que não eram mais usados aqui, medicamentos que ainda são produzidos para mercados muito pouco desenvolvidos, como Índia ou África subsaariana."

Como muitas vezes os pacientes não respondem bem às drogas, o eletrochoque pode fazer com que os neurotransmissores recebam melhor o medicamento. "Estamos fazendo uma psiquiatria de 40 ou 50 anos atrás, é duro dizer isso, mas essa é a verdade."

Como muitos venezuelanos, Cordova diz volta e meia pensar na possibilidade de deixar o país diante das crescentes dificuldades.

Em 2014, cobrava por consulta o equivalente a US$ 100. Até sexta-feira (15), o preço de uma sessão de uma hora com ele valia o equivalente a US$ 1,50 pelo câmbio negro.

"Meu poder de compra derreteu, não posso cobrar mais porque senão não atendo ninguém", lamenta Cordova. Boa parte de seus amigos partiu da Venezuela, assim como os dois filhos e a ex-mulher.

"Se as coisas continuarem a piorar, vou para Barcelona, onde tenho família, e monto um pequeno comércio para sobreviver, não tenho mais tempo e nem dinheiro para voltar a estudar para reiniciar a carreira", diz ele, que garante não se sentir abalado.

"Tenho uma fortaleza mental", diz, com um sorriso contido que parece querer a todo custo contradizê-lo.


Endereço da página:

Links no texto: