Folha de S. Paulo


Opinião

É hora de restringir os poderes nucleares do presidente dos EUA

Pela primeira vez nesta geração há ansiedade generalizada sobre a possibilidade de uma guerra nuclear, estimulada pelas tensões extremas entre Coreia do Norte e EUA.

O secretário de Estado Rex Tillerson tranquilizou os norte-americanos dizendo que poderiam dormir sossegados, um tipo de garantia que a maioria provavelmente nem gostaria de precisar ouvir.

Tillerson ofereceu o conselho para tentar diminuir o furor da imprensa em relação às ameaças trocadas entre Pyongyang e Washington. Suas palavras também refletem o profundo desconforto com o temperamento e (falta de) juízo dos dois líderes que podem começar uma guerra, Donald Trump e Kim Jong-un.

Tanto um como outro dão impressão de achar que podem se impor e intimidar com ameaças gravíssimas. O problema é que as palavras têm consequências que nenhum dos dois parece perceber.

Será que devemos viver em um mundo em que dois líderes se veem às voltas com o holocausto nuclear?

Andrew Harrer/Zuma Press/Xinhua
Donald Trump, presidente dos EUA, discursa em cerimônia do 11 de setembro
Donald Trump, presidente dos EUA, discursa em cerimônia do 11 de setembro

O empenho dos norte-coreanos para a obtenção de armas nucleares obviamente exige uma política de contenção e dissuasão muito mais explícita por parte dos EUA e de seus aliados, de modo a impedir que Kim assuma opções ainda mais arriscadas.

Mas o que pode ser feito para restringir as ações de um presidente americano cuja estabilidade mental já vem sendo questionada até pelo republicano que preside o Comitê de Relações Exteriores do Senado, Bob Corker?
Para limitar as chances de um conflito quase inimaginável, é preciso batalhar por um paliativo legislativo que já deveria ter sido implantado.

Segundo a Constituição dos EUA, somente o Congresso pode declarar guerra; apesar disso, nos inúmeros conflitos em que o país se envolveu desde a Segunda Guerra (1939-45), nenhum presidente pediu essa autorização.

O principal motivo? As armas nucleares. Um acordo tácito rezava que o presidente precisava da maior flexibilidade possível para reagir a um ataque soviético, e o envolvimento do Congresso acarretaria atrasos em um momento de crise. Assim, o comandante-em-chefe sempre teve poderes ilimitados para declarar guerra, incluindo ataques nucleares.

Entretanto, os estrategistas perceberam o risco de permitir que um único agente, em um silo em Dakota do Norte, provavelmente sob as condições mais estressantes imagináveis, lance um ataque dessa magnitude —e é por isso que o sistema de comando e controle exige uma operação com duas chaves, que devem ser acionadas simultaneamente, por duas pessoas, para ativar o lançamento.

O tuíte do armagedon

Já está mais do que na hora de introduzir proteções semelhantes no Executivo.

As circunstâncias estratégicas enfrentadas pelos EUA hoje são diferentes das que existiam durante a Guerra Fria: apesar da maior tensão, desencadeada pelo revanchismo russo na Ucrânia e em pontos da Europa Central e Oriental, o risco de uma guerra nuclear vem de líderes mal-intencionados, com a Coreia do Norte no topo da lista.

E promessas presidenciais, quase casuais, de "fogo e fúria" geraram circunstâncias extremamente perigosas.

Os EUA não devem, em absoluto, diminuir sua capacidade de reagir a uma investida convencional ou nuclear da Coreia do Norte contra seu território ou o de um de seus aliados; entretanto, é preciso instaurar um sistema de restrições para garantir que um ataque nuclear preventivo seja avaliado em um processo deliberativo e cuidadoso.

O Congresso deve revisar a lei que rege os poderes de guerra para incluir a possibilidade de ataques nucleares preventivos, o que impediria o presidente de simplesmente fornecer os códigos ao assessor militar que carrega a "maleta" nuclear e agir segundo sua autoridade.

A lei deve prever que um pequeno grupo, incluindo o vice-presidente, o Secretário de Defesa, o chefe do Estado-Maior Conjunto e os quatro líderes do Congresso e do Senado, consinta de maneira unânime. Assim, diversos indivíduos de olhos atentos, emoções estáveis e cérebros sãos poderiam impedir uma catástrofe resultante da falta de deliberação adequada.

A proposta levanta questões constitucionais complexas; todos os governos até hoje consideraram a lei dos poderes de guerra inconstitucional. Dar a pessoas indicadas pelo presidente e sujeitas às suas ordens o poder de veto formal sobre decisões militares pode ser problemático e abrir precedentes perigosos -e neste caso limitar o poderio à liderança do Congresso seria a melhor opção.

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Mesmo na Guerra Fria havia risco imenso de ceder a uma única pessoa a autoridade de matar milhões em poucos segundos. Não há o que justifique permitir que um presidente americano retenha a autoridade absoluta em circunstâncias completamente diferentes da Guerra Fria.

A garantia de que o armamento nuclear continua a ser o último recurso possível, a ser levado em conta somente após o consentimento dos líderes do Executivo e do Congresso, também acalmaria os aliados dos EUA, incomodados com a menção inconsequente de armas nucleares.

Isso não significa que Trump alimente o desejo de lançar um ataque nuclear; entretanto, os EUA têm que agir com prudência ao lidar com um Estado adversário isolado. No que lhe diz respeito, o Congresso tem poder de impedir reações imediatas e impulsivas que possam levar a um conflito mundial.

JEFFREY BADER foi assessor de Barack Obama para a Ásia (2009-11); JONATHAN D. POLLACK é especialista em Coreia e China na Brookings Institution e foi professor do Colégio Naval de Guerra dos EUA


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