Folha de S. Paulo


Não acredite em tudo que dizem sobre os "dreamers"

David McNew - 10.set.2017/AFP
LOS ANGELES, CA - SEPTEMBER 10: Thousands of immigrants and supporters join the Defend DACA March to oppose the President Trump order to end DACA on September 10, 2017 in Los Angeles, California. The Obama-era Deferred Action for Childhood Arrivals program provides undocumented people who arrived to the US as children temporary legal immigration status for protection from deportation to a country many have not known, and a work permit for a renewable two-year period. The order exposes about 800,000 so-called âdreamersâ who signed up for DACA to deportation. About a quarter of them live in California. Congress has the option to replace the policy with legislation before DACA expires on March 5, 2018. David McNew/Getty Images/AFP
Manifestantes protestam contra o fim do programa Daca em Los Angeles, no Estado da California

Quem quer deportar "dreamers" ("sonhadores" - imigrantes ilegais que chegaram aos EUA ainda crianças)? Não muitas pessoas, ao que parece.

Mesmo os veteranos defensores das restrições à imigração parecem dispostos a legalizar esse subconjunto de imigrantes sem documentos, se isso fizer parte de um pacote. Isso é verdade, apesar de que muito do que é dito sobre os "dreamers" não passar de balelas de relações públicas.

Por exemplo, é dito com frequência (de fato, o ex-presidente Barack Obama falou recentemente) que os aproximadamente 690 mil dreamers "foram trazidos a este país por seus pais". Muitos foram, realmente.

Mas essa condição não é necessária para uma pessoa se qualificar como dreamer e ter direito à proteção sob diversos planos, incluindo o de Obama. É preciso apenas ter entrado no país ilegalmente antes dos 16 anos de idade. Você pode ter decidido entrar ilegalmente contra a vontade de seus pais. Você é um dreamer, mesmo assim!

Também nos dizem que os dreamers são jovens que se formaram no ensino médio e estão indo à faculdade, ou então que são militares. É um exagero.

Na realidade, tudo que é preciso é que o dreamer se matricule em um curso de ensino médio ou um curso "alternativo", incluindo cursos online e aulas de inglês como segunda língua. Sob o programa de Obama, hoje suspenso, o dreamer nem sequer tinha a obrigação de continuar matriculado.

Os dreamers não são muito altamente qualificados, comparados à população geral.

Uma pesquisa recente conduzida para várias organizações pró-dreamers, com participantes recrutados pelas organizações, concluiu que a maioria dos dreamers não frequenta a escola, mas a imensa maioria deles trabalha. Porém, recebe um salário horário médio de apenas US$15,34, ou seja, muitos competem por trabalho com americanos menos qualificados, que já enfrentam dificuldades.

Os dreamers sobre os quais você lê geralmente foram escolhidos a dedo por serem os mais atraentes. Eles são os oradores de formatura de suas turmas. Fazem parte dos serviços de resgate em emergências. Eles curam doenças. Torcem pelos Yankees. Querem servir o Exército. Se os dreamers são exemplos para a população não documentada muito maior, estes são os exemplos para os exemplos.

Mesmo assim, considerando os dreamers como um todo, e não apenas os mais exemplares entre eles, eles representam um grupo atraente de candidatos à cidadania. Então por que não demonstrar compaixão e legalizá-los? Porque, como frequentemente acontece, quando se age por pura compaixão, muitas vezes ocorrem efeitos colaterais negativos.

Para começar, isso criaria incentivos perversos.

Você pode imaginar um incentivo maior da imigração ilegal do que a ideia de que, se você entrar ilegalmente no país, seus filhos poderão virar cidadãos americanos? É verdade que as proteções não se aplicam aos que ingressaram no país recentemente –pelo plano de Obama, a pessoa precisa ter entrado antes de 2007. Mas essas datas podem ser mudadas –o próprio Obama tentou fazê-lo uma vez.

E a justificativa apresentada para premiar aqueles que chegam quando são crianças –dizer que não é por culpa deles que eles estão aqui, que eles só conhecem a América como seu país, etc.– pode continuar a se aplicar no futuro, por tempo indeterminado.

E as crianças coitadinhas que chegaram em 2008? E em 2018? Existe uma razão pela qual nenhum país tem a regra de que se a pessoa entrou ilegalmente quando era menor de idade, passa a ser cidadã. Estaríamos convidando o mundo a fazer o mesmo.

De onde vêm os 'Dreamers' - Principais países de origem dos beneficiados

Em segundo lugar, isso teria repercussões.

Sob as regras de "migração em cadeia" adotadas em 1965 –ironicamente, para agradar aos conservadores, que pensavam, equivocadamente, que isso aumentaria a migração vinda da Europa–, os novos cidadãos podem trazer seus irmãos e seus filhos adultos, que, por sua vez, podem trazer seus irmãos e filhos adultos, até que vilarejos inteiros tenham se transferido para os Estados Unidos.

Isso quer dizer que os 690 mil dreamers de hoje rapidamente se converteriam em milhões de recém-chegados, que podem muito bem ser pouco qualificados e que quase certamente incluiriam os pais que os trouxeram –aqueles que, teoricamente, são os culpados.

Existem maneiras óbvias e sensatas de controlar esses efeitos colaterais.

Qualquer anistia dos dreamers poderia ser vinculada a uma grande modernização de nosso sistema, para impedir a chegada de uma nova enxurrada de indocumentados –por exemplo, uma ampliação compulsória do E-Verify, o sistema que permite aos empregadores verificar a situação legal dos funcionários que contratam.

Reduzir o direito de trazer parentes distantes. O senador Tom Cotton, republicano do Arkansas, propôs esse acordo –e seria fácil amenizar sua proposta, por exemplo, reduzindo a migração em cadeia apenas pelo mesmo número de pessoas que a nova Lei dos Dreamers acrescentar ao conjunto de cidadãos americanos.

O presidente poderia decretar anistia pontual para quem chegou aos EUA na Era da Leniência pré-Trump, mas deixar claro que as regras serão outras para quem vier futuramente.

Por que os democratas não aceitariam tal acordo imediatamente? Há anos eles defendem uma "reforma abrangente da imigração", um misto de anistia com implementação mais rígida das leis, visando prevenir outra enxurrada de imigrantes irregulares.

Mas a Lei dos Dreamers não é abrangente. É toda anistia e nada de prevenção, o que dirá qualquer redução na imigração legal.

'Dreamers' beneficiados - Desde sua criação, em 2012, o programa Daca já regularizou quase 800 mil jovens imigrantes nos EUA

É difícil deixar de pensar que os democratas (e os republicanos que defendem a Lei dos Dreamers) não estão realmente interessados em prevenir a entrada de imigrantes ilegais. Eles não estão com vontade de aceitar o acordo proposto por Cotton, porque não pensam que tenham a obrigação de aceitar.

Se eles vencerem, teremos a compaixão sem lidar com as consequências.

Seria especialmente lamentável em vista dos indícios de que a repressão imposta por Trump à imigração, que é simplesmente uma implementação acentuada das leis vigentes, já está ajudando a apertar o mercado de trabalho pouco qualificado e elevar os salários de trabalhadores pouco qualificados.

As organizações noticiosas andam veiculando reportagens sobre empregadores que não estão tendo acesso à oferta costumeira de trabalhadores não documentados e estão sendo forçados a adotar medidas radicais, como elevar salários. A prova dessa ligação, na cabeça do público, talvez seja o que mais assusta o lobby pró-imigração.

Tradução de CLARA ALLAIN


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