Folha de S. Paulo


Conheça a 'dama de rosa' que faz os anúncios do regime na Coreia do Norte

KCTV via AFP
A apresentadora Ri Chun-hee anuncia na TV estatal o teste norte-coreano de uma bomba de hidrogênio

Em algum lugar ao norte do paralelo 38, a terra tremeu inesperadamente no domingo (3). Depois veio a declaração trovejante de uma avó norte-coreana em um vestido tradicional cor-de-rosa.

Ri Chun-hee, a mais famosa apresentadora de noticiários da Coreia do Norte, anunciou na televisão estatal que a sexta detonação nuclear do país havia ocorrido sem nenhum problema.

"O teste de uma bomba de hidrogênio destinada a ser montada em nosso míssil balístico intercontinental foi um sucesso total", troou Ri, sorrindo, sentada diante de uma pintura etérea de um lago. "Foi um passo muito importante para completar o programa de armas nucleares do país."

Assista ao anúncio do teste da bomba de hidrogênio

Ri, 74, foi descrita como "a voz da Coreia do Norte" e "a apresentadora do povo", uma Barbara Walters da ditadura reclusa. Há mais de 40 anos ela é a mais famosa apresentadora no único canal de notícias do país, a Televisão Central Coreana (KCTV). Sua predileção pelos choson-ots, vestidos formais coreanos, em cor-de-rosa forte lhe valeram o título de "dama de rosa".

Alguns de fora costumavam fazer piadas sobre ela, chamando-a de "Patti de Pyongyang", segundo a revista "Atlantic". Ou a usariam como elemento para ridicularizar, por exemplo, Sean Spicer ("Só lhe falta um vestido", disse um usuário do Twitter.)

Mais que qualquer coisa, Ri é conhecida pela voz cheia e imponente com que anuncia a mensagem do regime. Com pompa típica e um tom quase de ópera, ela anunciou testes nucleares, condenou os inimigos do regime e narrou a vida e as façanhas de três gerações de líderes norte-coreanos.

"Ela tem uma voz muito agressiva, que os norte-coreanos diriam que 'preenche a tela'", disse Kim Yong, desertor do norte que se tornou uma personalidade na Coreia do Sul, à agência Reuters em um perfil em 2009. "Escutando os narradores sul-coreanos quando cheguei aqui, parecia ouvir mamãe e papai conversando no quarto. Os apresentadores às vezes tropeçavam nas palavras, enquanto os da Coreia do Norte não podem fazer isso, ou são demitidos."

Detalhes sobre a vida e a carreira de Ri são escassos, mas ela teria nascido em 1943 em uma família pobre no que hoje é a parte sudeste do país, e frequentou a escola de teatro em Pyongyang.

A revista estatal norte-coreana "Chosun Monthly" fez um relato apócrifo em 2009 sobre como ela se tornou uma espécie de protegida de Kim Il-sung (1912-1994), o fundador do Estado norte-coreano. Kim a incentivou "com amor caloroso e fé" a desenvolver uma voz autoritária, segundo a reportagem, que foi traduzida pela Reuters.

Aparentemente, a tutelagem do Querido Líder funcionou.

"Com o passar do tempo, sua voz passou a ter um apelo tal que sempre que ela falava no noticiário os espectadores ficavam emocionados", dizia a reportagem. "Quando Ri anunciava relatórios e declarações, os inimigos tremiam de medo."

Ri entrou para a televisão estatal em 1971, quando esta começava a se formar. Nos anos 1980 era uma "presença constante" na rede, lendo reportagens sobre tudo, de acontecimentos nacionais e proclamações do governo a previsão climática, segundo o blog North Korea Leadership Watch.

Em 1994, ela deu aos prantos a notícia de que Kim Il-sung tinha morrido. Dezessete anos depois, chorou novamente quando contou ao país que o filho dele, Kim Jong-il (1941-2011), havia morrido de uma "doença súbita".

Talvez seja o momento mais famoso em sua carreira. Um vídeo de noticiário mostra Ri vestida de preto e parecendo distante, sentada diante de uma pintura de uma paisagem de floresta e montanhas. Sua voz treme enquanto ela dá a notícia.

Veja o anúncio da morte de Kim Jong-il, em 2011

"Nosso grande camarada Kim Jong-il, o secretário-geral do Partido dos Trabalhadores da Coreia, presidente da Comissão Nacional de Defesa da República Popular Democrática da Coreia e comandante supremo do Exército Popular do Coreia, faleceu", ela entoa.

Ri continua com soluços dignos de uma novela vespertina: "Fazemos este anúncio com grande tristeza".

Ela se aposentou dos noticiários em 2012, mas o regime norte-coreano a chama em ocasiões especiais para fazer grandes anúncios públicos.

O artigo na "Chosun Monthly" relata que Ri vive em "relativo luxo" em Pyongyang com seu marido, filhos e netos. "Ri Chun-hee, com seu microfone na mão, abençoada pelo líder, continua com seus espectadores hoje sem parecer um dia mais velha do que quando era solteira", diz o artigo.

Parte do que torna a carreira de Ri notável, segundo o blog North Korea Leadership Watch, é que, diferentemente de suas homólogas, ela sobreviveu aos expurgos brutais do regime. As entidades editoriais do governo são "habitualmente submetidas a atritos geracionais e políticos entre o pessoal", dizia uma postagem no blog. "Ri viu muitos de seus colegas e supervisores serem demitidos ou enviados à reeducação."

Mais ou menos na época de sua aposentadoria, Ri deu uma rara entrevista a um programa da mídia estatal chinesa. Nele, descreveu que pretendia mudar seu foco para trabalhar nos bastidores e treinar uma nova geração de apresentadores.

"Muitas âncoras hoje são muito jovens e lindas, e são mais adequadas a aparecer aos espectadores", disse Ri.

Mas por enquanto ela ainda é a apresentadora preferida do regime para anúncios de sacudir a terra como o teste nuclear de domingo. Se surgirem hostilidades na península Coreana, quase certamente será ela a voz imponente que transmitirá a notícia.

"São os anúncios de alto nível, aqueles de que a Coreia do Norte sente especial orgulho e têm um valor máximo de propaganda", disse ao "Los Angeles Times" no mês passado Martyn Williams, que escreve para um site de tecnologia norte-coreano. "É ela quem aparece e conta ao país e ao mundo."

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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