Folha de S. Paulo


Falso fotógrafo de guerra galã é desmascarado

Um caso radical de "fake news" veio à luz em um campo geralmente associado a heroísmo e tragédias: um fotógrafo de guerra brasileiro, com mais de 120 mil seguidores em uma rede social e imagens publicadas em sites internacionais de grande visibilidade se revelou falso.

A expressão da moda não dá conta de toda a falsidade: não só suas notícias eram mentirosas, ele mesmo não existia. As "fake news" vinham de um perfil fake.

Há pelo menos três anos um perfil sob o nome Edu Martins publicava textos e imagens de diferentes áreas de conflito: Síria, Iraque e Faixa de Gaza. Nas selfies, via-se um surfista forte, loiro de olhos claros, em manobras habilidosas; em outros, aparecia com capacete azul de voluntário da ONU, câmeras de primeira linha, colete a prova de balas, o kit típico dos fotógrafos de guerra.

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Imagem exibida em perfil de rede social sob o nome
Imagem exibida em perfil de rede social sob o nome "Edu Martins"

De nome comum, com xarás músico e fotógrafo de estúdio, recentemente ele deletou a conta na rede social.

A essa mistura romântica de atividades radicais, ele adicionava um tempero ainda mais glamouroso: segundo seus relatos, Edu Martins era também um ativo benemerente, dedicando-se a trabalhos humanitários como ajudar a sustentar um campo de refugiados em Gaza, onde ensinava surfe para crianças.

Seu jeito de encarar a vida, dizia, mudou radicalmente depois de lutar e superar uma leucemia entre os 18 e os 25 anos. Sua trajetória tinha vários componentes do clássico arquétipo do herói.

Só que não: a história do surfista e fotógrafo de guerra era falsa, revelou na quinta (31) o jornalista Fernando Costa Netto em uma coluna no site de surfe "Waves".

Repórter de texto e foto, com coberturas na guerra da Bósnia e em Gaza, Costa Netto foi editor do extinto "Notícias Populares" e hoje comanda a galeria paulistana DOC, dedicada à fotografia documental. O jornalista definiu o caso como "uma história de cair o queixo".

LIGAÇÃO DA NAMORADA

A notícia mais antiga da existência de Edu Martins é narrada pelo fotógrafo Gabriel Chaim, que cobre o cerco a Raqqa (na Síria), principal base dos terroristas do Estado Islâmico, depois de quase um ano em Mossul (Iraque).

Ele conta que no início de 2014, quando cobria os conflitos em torno de Aleppo (Síria), recebeu um telefonema de uma mulher que se dizia namorada de Edu Martins, fotógrafo brasileiro que tinha sido ferido na cidade e perguntava se ele poderia ajudar.

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Imagem exibida em perfil de rede social sob o nome
Imagem exibida em perfil de rede social sob o nome "Edu Martins"

Chaim achou a história estranha mas se pôs a tentar localizá-lo. No dia seguinte, o telefone tocou e o próprio Edu Martins se apresentou, dizendo o ferimento fora leve e estava bem. Depois, sumiu.

Costa Netto conheceu Martins por rede social há cerca de um ano. Como representa fotógrafos de guerra em sua galeria e pratica surfe, teve uma empatia imediata e passou a falar com ele por aplicativos de comunicação.

No mês passado, entrevistou-o para a mesma coluna no site "Waves", quando colheu o depoimento detalhado do fotógrafo que vinha publicando imagens em sites internacionais e brasileiros.

O primeiro estranhamento veio nessa época, quando Costa Netto organizava uma mostra de fotógrafos de guerra brasileiros e convidou Edu Martins.

Mas logo que ele mandou as fotografias, o curador estranhou que elas não tinham uma linguagem própria do autor, "pareciam feitas por fotógrafos diferentes". Fotos da África tinham um estilo, do Iraque, outro, em Gaza outra diferente das duas anteriores. "Era uma fotografia sem DNA, esquisita e que parecia ter sido feita por fotógrafos diferentes. Os fotógrafos têm linguagem, é a primeira coisa que aprendemos em fotografia", contou à Folha.

Além disso, as imagens enviadas tinham baixa definição (possivelmente reproduções de tela), insuficientes para ampliar para expôr. Quando o curador pedia imagens em alta qualidade, o suposto fotógrafo dizia que estava sem acesso ao computador. O tempo passou, o prazo expirou e nada das fotos.

A mostra ficou pronta e Costa Netto avisou Martins que sua participação ficaria para outra oportunidade.

Pouco depois, o suposto fotógrafo desapareceu por vários dias. O sumiço coincidiu também com a conquista da cidade de Mossul, controlada pelo Estado Islâmico, pelo exército do Iraque.

Durante esse período, Costa Netto foi procurado por jornalistas que leram a entrevista e buscavam informação sobre o fotógrafo, indicando que se tratava de um falso perfil que pirateava fotos de outros profissionais e, após enganar editores em vários cantos do mundo, vinha sendo procurado pela polícia.

Quando reapareceu, Martins disse que não tinha conseguido entrar na Síria (com a queda de Mossul, no Iraque, os fotógrafos de guerra deslocaram-se para cobrir o cerco a Raqqa, no país vizinho).

Estava muito cansado e iria sumir por um tempo. Num último contato, disse que além da conta no Instagram, deletaria o WhatsApp e passaria um ano viajando de van pela Austrália. E sumiu. "Edu Martins morreu", diz o título do artigo de Costa Netto.

Segundo ele, a polícia internacional quer prender "Edu Martins" por crime na internet, danos morais, roubo de imagens – resta saber como encontrar alguém que foi sem nunca ter sido, deletou seu rastro e sumiu.

Para Chaim, o suposto colega provoca uma reflexão em todos que acreditaram em sua história: "Matérias sobre ele nos principais jornais do mundo. Ele nos enganou. Nos enganamos".


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