Folha de S. Paulo


Opinião

Porta-aviões do Reino Unido sem aviões é metáfora do 'brexit'

O porta-aviões HMS Queen Elizabeth, que entrará em serviço em breve, representa uma metáfora infeliz dos problemas do Reino Unido ao sair da União Europeia ("brexit").

O maior navio já construído para a Marinha Real britânica foi concebido como uma declaração da ambição global do país. "Britannia" mais uma vez navegaria, embora não exatamente dominasse, os oceanos mais distantes do mundo. Esse era o plano, pelo menos.

Ben Stansall - 16.ago.2017/AFP
O porta-aviões britânico HMS Queen Elizabeth é atracado na base de Portsmouth, no sul da Inglaterra
O porta-aviões britânico HMS Queen Elizabeth é atracado na base de Portsmouth, no sul da Inglaterra

O detalhe é que o governo britânico não pode comprar os caros caças a jato americanos que devem usar o convés do porta-aviões sem dizimar o resto do orçamento da Defesa.

As maiores embarcações da Marinha dos EUA carregam 60 aviões ou mais. O Queen Elizabeth poderia acomodar 40, mas terá de se satisfazer com uma dúzia ou menos. Um porta-aviões sem aviões e um Exército encolhido a seu menor porte desde as guerras napoleônicas? A projeção de poder tem um som oco.

O "brexit", como insiste o governo de Theresa May, é mais uma afirmação do alcance global histórico do país. A primeira-ministra adotou "Reino Unido Global" como mantra oficial. Ninguém explicou direito por que abandonar a influência na Europa reforçará a posição britânica em outros lugares.

A lógica vai na direção oposta. Quanto ao comércio, a Alemanha vende muito para a China de dentro da União Europeia. Não importa. Fale baixo, mas as visões de Downing Street [onde fica a casa do primeiro-ministro britânico] estão sendo reduzidas. Os ministros começam a admitir que o Reino Unido simplesmente não pode pagar por uma ruptura clara e precisa com a UE.

Tudo mudará, mas por favor fique tranquilo que nada será muito diferente. Essa é a mensagem ambígua de vários trabalhos de posicionamento publicados pelo governo antes da próxima rodada de negociações. Os eleitores têm certeza de que "brexit" significa "brexit"; as empresas, de que o significado de "brexit" é... passível de interpretação.

O Reino Unido deixará a união alfandegária da UE, mas, adivinhe, May quer um novo acordo para imitar os atuais arranjos. O Tribunal Europeu de Justiça será banido, mas o Reino Unido aceitará a jurisdição de outro tribunal que seja liderado por... sim, o próprio Tribunal Europeu de Justiça.

As empresas não se beneficiarão mais do mercado único, mas não se preocupe, May promete uma parceria "profunda e especial" que garantirá um acesso sem atritos.

Há mais alguns círculos para se encontrar a quadratura. O governo ainda não admitiu que terá de continuar imitando os regimes regulatórios europeus muito depois do "brexit". Não há outra maneira de proteger o lugar do Reino Unido nas redes de abastecimento europeias.

Uma das coisas curiosas sobre os defensores do "brexit" é sua visão teimosamente antiquada do comércio internacional. Tudo se resume, insistem eles, a tarifas. Você poderia dizer que isso se encaixa em uma visão de mundo originária da nostalgia imperial.

A realidade moderna é que na maior parte das vezes o que realmente importa são os critérios e normas. Você não pode vender alimentos a menos que ele cumpra os critérios de higiene acordados, peças de automóveis devem ter certificado de segurança e assim por diante.

O comércio de serviços, por sua vez —o Reino Unido vende cerca de 95 bilhões de libras (R$ 380 bilhões) à UE todos os anos—, repousa sobre regras comuns ou acordos de reconhecimento mútuo.

A imigração apresenta mais uma contradição. May diz que reduzirá seu número mais que pela metade, para menos de 100 mil por ano. Mas quase não se passa um dia sem uma promessa de que os hospitais não perderão médicos e enfermeiros europeus, que os agricultores continuarão recebendo uma oferta de mão de obra barata do Leste Europeu e que os banqueiros estrangeiros e sábios tecnológicos sempre serão bem-vindos.

Suponho que poderíamos parabenizar os ministros por restabelecer um pequeno contato com a realidade. Ao propor uma transição pós-brexit, o governo reconheceu a loucura de uma saída abrupta; agora, atenuando o discurso de uma ruptura decisiva com Bruxelas, está tentando mitigar o prejuízo econômico do "brexit".

O problema subjacente é que a maioria dos ministros sabe que o "brexit" tem um custo alto, mas não quer confrontar eleitores com as consequências do referendo. Como, perguntam eles, podemos dizer aos eleitores que fizeram uma péssima escolha? Então esses ministros prometem fazer um sucesso do que eles sabem que será um fracasso.

O atual conjunto de disfarces não vai fornecer a solução. Eles ignoram o fato inevitável de que outros 27 governos também têm uma opinião; e que se alguma coisa une os que estão do outro lado da mesa é que não podem permitir que o Reino Unido, na frase fácil do secretário das Relações Exteriores, Boris Johnson, "coma o bolo e o guarde". A única maneira de replicar as vantagens da afiliação à UE é continuar sendo um afiliado.

Os custos, é claro, vão além dos econômicos. Assim como o governo não sabe o que fazer com seus novos porta-aviões (um segundo, o HMS Prince of Wales em breve se somará ao Queen Elizabeth), não tem nada de substancial para dizer sobre seu incensado "Reino Unido Global".

Sem uma voz nos conselhos da Europa, marcará uma posição independente sobre o revanchismo russo, o terrorismo islâmico, a migração em massa ou a mudança climática?

Em outro momento o Reino Unido poderia ter caído completamente nos braços dos EUA. Afinal, a primeira aeronave a operar no Queen Elizabeth pertencerá aos Fuzileiros Navais americanos. Mas a Presidência de Donald Trump retirou qualquer brilho que restasse das alegações de uma relação especial.

Sem dúvida os chefes da Marinha britânica estão neste momento pensando muito em como mobilizar dois reluzentes porta-aviões carregando poucos e preciosos aviões. O governo talvez devesse seguir sua pista e considerar qual pode ser o papel global de um país decidido a se lançar à deriva de seu próprio continente.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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