Folha de S. Paulo


Análise

Acuado, Trump escolheu lugar seguro para continuar atirando

O que deveria fazer um presidente para tentar reverter seu momento de maior isolamento político em meio a uma profunda divisão no país?

Trabalhar nos bastidores para restabelecer um mínimo apoio de aliados? Enviar uma mensagem cuidadosa sobre a necessidade de união?

Donald Trump preferiu continuar atirando.

Escolheu o único lugar onde, aparentemente, ainda se sente confortável -um palanque de comício, com um público controlado de simpatizantes- para atacar a mídia, políticos de seu partido e manifestantes contrários a ele em mais de uma hora de discurso em Phoenix, no Arizona, na noite de terça (22).

No começo, o presidente parecia disposto a apelar à união. Destacou a importância de que todos os americanos estejam "no mesmo time", "se amem" e mostrem "lealdade uns aos outros".

Pouco depois, já provocava os manifestantes contrários que protestavam do lado de fora. Quando um opositor gritou dentro do centro de convenções, Trump questionou como ele havia entrado: "Ele deveria estar com aqueles poucos lá fora".

Por mais de meia hora, o presidente leu declarações dadas por ele nos dias seguintes à marcha de grupos racistas em Charlottesville, Virgínia, que terminou em confrontos violentos e uma morte no último dia 12.

O objetivo era convencer o país, sem o "filtro" da imprensa, de que sua reação foi correta, de que ele havia condenado os grupos que pregam ódio racial e que a mídia seria desonesta ao não relatar isso da forma correta.

O efeito, porém, foi parecer acuado. E pouco disposto a dizer a verdade, já que omitiu partes importantes do discurso sobre a marcha, como quando disse, horas depois da morte em Charlottesville e diante das câmeras de TV, que condenava a violência "de muitos lados", sem mencionar especificamente os grupos racistas ligados à extrema direita americana.

Trump só faria isso dois dias depois, sob pressão de aliados -e ainda mostraria, no dia seguinte, que de fato achava que a violência do protesto contra a marcha equivalia à dos racistas.

Como fazia durante a campanha de 2016, o agora presidente apontou os repórteres que cobriam o comício -"pessoas desonestas", "pessoas ruins" que "não gostam do nosso país"-, dando espaço para quase um minuto de vaias e gritos de "vergonha" do público.

Também inflamou seus apoiadores ao criticar os senadores do Arizona, John McCain e Jeff Flake, ambos republicanos como ele -e ambos críticos de seu governo.

Trump não citou nomes, dizendo ter sido orientado por assessores a não fazê-lo, e ironizou que assim estava sendo "muito presidencial".

Só que as alfinetadas contra a pequena maioria republicana no Senado definitivamente não ajudarão Trump quando o Congresso voltar ao trabalho, em setembro.

Ele pretende passar uma reforma tributária, mas sua tentativa de substituir o sistema de saúde implementado pelo antecessor, Barack Obama, naufragou no Senado. Ali, cada voto conta muito, e Flake -chamado de "fraco" por Trump na terça- foi um dos que apoiaram o presidente na votação da saúde.

Para pressionar o Congresso, Trump ainda ameaçou interromper as operações de serviços públicos se os legisladores não aprovarem a verba para construir o prometido muro na fronteira com o México -pelo qual ele dissera que o país vizinho pagaria.

Para os republicanos, pouco valerão os gritos dos trumpistas para "drenar o pântano" de Washington diante do atrito causado pelo presidente e de sua aprovação em queda, atestada nesta quarta por duas pesquisas em que o índice fica abaixo de 40%.

Joshua Roberts/Reuters
 U.S. President Donald Trump speaks at a campaign rally in Phoenix, Arizona, U.S., August 22, 2017. REUTERS/Joshua Roberts ORG XMIT: PHO169
O presidente dos EUA, Donald Trump, discursa durante comício em Phoenix, Arizona

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