Folha de S. Paulo


Opinião

Elite dos EUA contra-ataca e se volta contra Trump

A eleição presidencial de 2016 representou, entre outras coisas, um repúdio à elite dos Estados Unidos e a tudo em que ela acredita.

Ao disputar a eleição tendo por plataforma as promessas estreitas do populismo, nativismo e isolacionismo, um sujeito rancoroso e vindo de fora da política tradicional desafiou muitos dos preceitos bipartidários que há muito uniam os líderes, afluentes e dotados de educação refinada, de nosso país e de nossa cultura.

Passados sete meses do início do reino do presidente Donald Trump, a elite está contra-atacando. De Wall Street a West Palm Beach e West Hollywood, a semana passada viu uma virada, e talvez até um ponto de inflexão.

Porque Trump abdicou de sua liderança moral, depois de Charlottesville, as pessoas bem conectadas começaram a usar sua influência –suas contas bancárias polpudas e seu prestígio como celebridades– para se pronunciar sobre o que torna os Estados Unidos realmente grandes.

O número crescente de organizações que estão cancelando eventos de gala, de astros que boicotam cerimônias, e de presidentes de grandes empresas que renunciam a seus postos em conselhos consultivos do governo está resultando em isolamento ainda maior para Trump.

Pessoas que estão na órbita do presidente dizem que ele está zangado com tudo isso. Depois de derrubar as muralhas, agora é ele que está sob sítio.

Ao contrário da maior parte das críticas que havia causado desde que assumiu, o que aconteceu na semana passada afetou de fato o seu bolso. O valor da "marca" Trump, que ele estimou certa vez em bilhões de dólares, despencou desde que o presidente declarou que "algumas pessoas ótimas" estavam protestando ao lado dos neonazistas e dos supremacistas brancos na Universidade da Virgínia.

Temerosas de perderem grandes doações, diversas organizações assistenciais cancelaram eventos marcados para o Mar-a-Lago Club, de Trump, na Flórida.

Na quinta-feira (17), a Cleveland Clinic, a American Cancer Society e a American Friends of Magen David Adom cancelaram eventos no local.

Na sexta-feira (18), foi a vez do Exército da Salvação, da Cruz Vermelha dos Estados Unidos e da [organização de pesquisa sobre o câncer] Susan G. Komen.

No sábado (19), a Preservation Foundation of Palm Beach cancelou um jantar dançante marcado para março do ano que vem. Esse cancelamento provavelmente significa um quarto de milhão de dólares em faturamento perdido para o clube.

No domingo (20), o Zoológico de Palm Beach e uma organização de assistência aos idosos chamada MorseLife anunciaram que não realizarão seus eventos anuais de arrecadação de fundos em Mar-a-Lago.

Tanto o Palm Beach Habilitation Center quanto o Kravis Center convocaram reuniões de emergência de seus conselhos para discutir se manterão seus eventos no clube, de acordo com uma reportagem publicada pelo "Palm Beach Post".

"Se ele voltar ao clube para finais de semana, no começo do ano que vem, o presidente pode encontrar salões de baile vazios e silenciosos", reportaram Drew Harwell e David Fahrenthold, do "Washington Post". "Um dos cancelamentos foi um golpe direto para os Trump. O Big Dog Ranch Rescue anunciou na sexta-feira que não realizaria um evento de arrecadação de fundos no clube, e que em lugar disso ele seria realizado na sede da organização, ali perto. Lara Trump, nora de Trump, seria uma das organizadoras do evento".

A Casa Branca anunciou no sábado que nem o presidente e nem a primeira dama, Melania Trump, comparecerão ao jantar de premiação do Kennedy Center Honors, em dezembro. Pela primeira vez desde que o prêmio foi criado em 1978, o presidente e a primeira dama não receberão os premiados antes da cerimônia de entrega.

Isso foi decidido depois que três dos cinco agraciados com o prêmio –o produtor de TV Norman Lear, o cantor Lionel Richie e a bailarina Carmen de Lavallade– disseram que boicotariam ou poderiam boicotar a tradicional recepção.

"Quanto aos dois outros premiados, o rapper LL Cool J disse que não sabia se compareceria, e a cantora Gloria Estefan, de ascendência cubana, disse que iria para tentar influenciar o presidente quanto a questões de imigração", escreveram David Nakamura, Amy Wang e Peter Marks, do "Washington Post".

Na sexta-feira, os membros do Comitê de Arte e Ciências Humanas da Casa Branca anunciaram sua renúncia coletiva.

"Ignorar sua retórica odienta nos tornaria cúmplices de suas palavras e ações", eles escreveram em carta aberta ao presidente. "Supremacia, discriminação e peçonha não são valores norte-americanos. Somos melhores que isso. E caso isso não esteja claro para o senhor, pedimos que também renuncie ao seu posto".

Com tantos assuntos importantes ocupando as manchetes, seria fácil descartar intrigas em torno de uma cerimônia dirigida a astros de Hollywood. Afinal, temos de nos preocupar com o Afeganistão, a Coreia do Norte e a Rússia. Mas a decisão de Trump de não participar da cerimônia do Kennedy Center Honors, anunciada com três meses de antecedência, é significativa.

Pode ter certeza de que ser esnobado dessa maneira incomoda Trump, e muito. Ele passou a vida inteira tentando se tornar parte do primeiro time de celebridades.

Trump é um garoto de Queens que tentou ao máximo conquistar a aceitação de Manhattan. A pompa e circunstância da presidência estavam entre os motivos que o levaram a se candidatar.

Ele sentiu empolgação genuína pelos deveres cerimoniais do posto, depois de inesperadamente vencer a eleição. Mais do que a maioria dos presidentes, apesar do que ele possa dizer em contrário, Trump demonstrou seu amor por cerimônias como a do Kennedy Center.

O que ele não gosta, e se esforça ao máximo por evitar, é humilhação pública. Depois de sua experiência no jantar dos correspondentes da Casa Branca em 2011, quando foi ridicularizado por Barack Obama e Seth Meyers em seus discursos, Trump anunciou que não participaria do evento este ano.

Tampouco arremessou a primeira bola da temporada do beisebol para o Washington Nationals, como presidentes precedentes fizeram, porque teve medo de ser vaiado.

Como macho alfa, Trump parece sentir satisfação especial quando pessoas mais ricas, mais bacanas e mais bonitas do que ele lhe prestam reverências. É meio ridículo escrever a respeito, mas é verdade. Ter sua mão beijada parece ser uma das partes favoritas da presidência, para Trump. Mas o beija-mão já não é tão frequente, nas últimas semanas.

Trump se considera um grande empreendedor, mas a maioria dos executivos de negócios verdadeiramente de elite jamais o viram como igual.

Ele foi astro de reality show e comandou negócios imobiliários herdados de sua família, fracassando espetacularmente em Atlantic City e levando empresas à falência.

Os verdadeiros gigantes da indústria, os chamados mestres do universo, costumam dizer, em foro privado, que ele não passa de um fingidor. Mas a maioria deles tentou se reaproximar de Trump depois de sua eleição, para promover os interesses de suas companhias e ganhar acesso.

Colocando em risco as cotações das ações de suas empresas, muitos presidentes-executivos se pronunciaram na semana passada.

O primeiro foi Kenneth Frazier, da Merck, que deixou seu posto no Conselho Industrial do presidente "por motivos de consciência pessoal". Mencionado a "responsabilidade por me posicionar contra a intolerância e o extremismo", Frazier tornou mais difícil para os colegas manterem suas posições consultivas no governo. Muitos outros líderes empresariais sofreram forte pressão de seus funcionários e de predecessores para que fizessem o mesmo.

Pelo final da semana, o conselho industrial, o Fórum de Estratégia e Política Pública do presidente e o Conselho de Infraestrutura haviam sido dissolvidos.

Trump atacou Frazier no Twitter, depois acusou os demais executivos de estarem "posando", e por fim –de maneira bizarra e falsa– afirmou que a decisão de dissolver os conselhos havia partido dele –e não dos executivos.

O efeito líquido disso tudo foi solapar a imagem de Trump como figura importante do mundo dos negócios, e líder respeitado por seus colegas empreendedores.

Steve Pearlstein, colunista de negócios do "Washington Post", acredita que as renúncias dos membros de conselhos consultivos na semana passada "serão encaradas como um ponto de inflexão na evolução do capitalismo norte-americano –um reconhecimento, por parte de alguns dos principais executivos do país, de que o foco obsessivo em maximizar lucros e preços de ações, que vinha sendo seu lema há três décadas, deixou de ser aceitável em termos políticos e morais".

"É improvável que qualquer dos executivos que posaram sorridentes ao lado do presidente na primeira reunião do Fórum Estratégico e de Política Pública e da Iniciativa para o Emprego Industrial, no trimestre passado, tenha sido partidário entusiasta de Trump como candidato", escreveu Pearlstein em artigo publicado domingo.

"Publicamente, a maioria deles havia expressado rejeição às posições do presidente sobre a imigração, comércio internacional, mudança do clima e direitos dos homossexuais. Em foro privado, muitos o viam como inapropriado para o posto. Mesmo assim, os assessores econômicos do presidente convenceram os executivos de que eles poderiam ajudar a formular o programa econômico do governo. E os executivos pareciam ávidos por conferir apoio e legitimidade aos esforços do governo para elevar os lucros de suas companhias, por meio de cortes de impostos e redução da regulamentação".

"Agora, depois de décadas pregando que aquilo que era bom para a General Motors era bom para os Estados Unidos, os líderes empresariais reconheceram que talvez o oposto seja verdade –o que é bom para os Estados Unidos é bom para a General Motors", ele concluiu. "Por mais tardia que tenha sido sua conversão, a ação deles na semana passada foi corajosa e teve impacto. Devemos-lhes gratidão".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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