Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Estados Unidos e Rússia projetam 'nova Guerra Fria'

Evan Vucci - 7.jul.2017/Associated Press
Donald Trump e Putin em reunião do G20, em julho
Donald Trump e Putin em reunião do G20, em julho

No auge da Guerra Fria, na década de 1980, os EUA tinham cerca de 300 mil militares baseados na Europa, de prontidão para resistir a uma invasão soviética. Com o fim da URSS em 1991, Washington trouxe para casa quase todo esse pessoal.

Hoje restam apenas 30 mil americanos no Velho Continente. Ironicamente, estão voltando a ter o mesmo papel dissuasivo de antes, à medida que crescem as tensões com o principal Estado sucessor da URSS, a Rússia.

Os EUA, e em menor grau o Reino Unido, a França e outros aliados da Europa ocidental estão agora realizando cada vez mais manobras militares na parte oriental do continente, em países como Lituânia, Bulgária e Polônia.

Os efetivos são meramente simbólicos —por exemplo, uma brigada blindada americana foi enviada à Polônia (com 4.000 homens e 90 tanques pesados M-1 Abrams). O objetivo é garantir a segurança dos novos aliados contra aventuras russas, como foram a tomada da Crimeia e o ataque à Geórgia.

A Rússia ficou particularmente indignada com a expansão a leste da aliança militar Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) porque são países que antes eram seus aliados do Pacto de Varsóvia. O ano de 2017 pode estar vendo o começo de uma nova Guerra Fria. Assim como no clássico conflito entre URSS e EUA, é difícil chegar a um consenso sobre quando começou.

Pode-se argumentar que já em 1917 foram lançadas as sementes do conflito. Em outubro, será comemorado o centenário da Revolução Russa.

Instalou-se, então, um regime político diferente de todos os outros, e que argumentava que não poderia existir convivência com os odiados países capitalistas. Vários países intervieram com tropas para eliminar o nascente Estado socialista. A lembrança dessa intervenção alimenta a tradicional paranoia russa, assim como o ataque surpresa dos alemães em 1941.

Os historiadores costumam usar um discurso de 1947 do presidente americano Harry Truman (1884-1972) como o marco inicial da Guerra Fria. A chamada Doutrina Truman foi criada para combater a expansão geopolítica da URSS. Ela implicava o apoio americano a países ameaçadas pelo comunismo. Os primeiros recipientes dessa ajuda econômica e militar foram Grécia —que viveu uma guerra civil com a guerrilha de esquerda— e Turquia.

Em 5 de março de 1946, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill fez um famoso discurso nos EUA, com Truman presente, em que dizia que uma "cortina de ferro" tinha descido na Europa.

Em 1947, a guerra civil na China se intensificou, levando à tomada do poder pelos comunistas de Mao Tse-tung, em 1949. Com a invasão da Coreia do Sul pela comunista Coreia no Norte em 1950, parecia que o mundo capitalista estava em plena defensiva em todo o planeta.

O ditador soviético Josef Stálin já tinha declarado "guerra" antes de Truman. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ele conteve suas críticas, pois EUA e Reino Unido eram seus aliados. Mas, vencida a Alemanha, voltou a recriminar os países capitalistas.

Em um discurso em 9 de fevereiro de 1946, Stalin declarou que uma ordem internacional pacífica não poderia ser construída em um mundo de economia capitalista.

A URSS deveria então se preparar para "qualquer eventualidade", segundo o historiador e especialista em armamento Norman Friedman, autor do clássico "The Fifty Year War "" Conflict and Strategy in the Cold War" (A Guerra dos 50 Anos - Conflito e Estratégia na Guerra Fria).

Friedman recua a origem do conflito antes mesmo da Segunda Guerra, durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Em 1937, os comunistas tomam o poder na república espanhola. "Foi a primeira tentativa soviética depois da Guerra Civil russa para tentar obter o controle de outro país", afirma Friedman.

Onde o Exército Vermelho (rebatizado Exército Soviético em 1946) ocupou território no fim da Segunda Guerra foram instalados regimes comunistas. Esse expansionismo deixa ainda hoje preocupado o Leste Europeu.

Os enormes exercícios militares russos são um fator de alarme. Eles podem envolver entre 65 mil e 155 mil militares; no mesmo período, a maior manobra da Otan envolveu apenas 16 mil soldados. A Marinha russa voltou a realizar exercícios em larga escala no Atlântico.

Os russos também são adeptos dos exercícios "instantâneos", sem planejamento prévio. "Eles testam a capacidade dos militares para se mobilizar e se deslocar imediatamente. São um meio importante pelo qual Moscou tenta intimidar vizinhos", escreveram os analistas Ian Brzezinski e Nicholas Varangi.

Na Guerra Fria, as maiores concentrações de tropas americanas no exterior estavam em países da linha de frente —como a Alemanha e a Coreia do Sul. Com a ênfase na "guerra ao terror" e intervenções no Iraque e Afeganistão, a tendência foi basear as forças em locais mais próximos do Oriente Médio.

A "nova Guerra Fria" promete reverter isso. Veículos vão perder as cores de areia e voltar a ser pintados na camuflagem padrão da Otan —verde, marrom e preto.

Após uma década de ênfase na guerra contra insurgência, analistas retomam seu trabalho de contar tanques, mísseis, navios e aviões. A geopolítica voltou à moda.


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