Folha de S. Paulo


China aproveita briga de EUA e Coreia do Norte para firmar liderança na Ásia

Os aliados asiáticos dos EUA estão nervosos com a ameaça do presidente Donald Trump de despejar "fogo e fúria" na Coreia do Norte, mas a China vê uma oportunidade de capitalizar o medo e a confusão e surgir como a potência sensata na região, segundo analistas que estudam a liderança chinesa.

Ao tratar com presidentes americanos —foram oito desde que Richard Nixon abriu as relações com o país—, os líderes chineses procuram algumas qualidades importantes, sobretudo confiabilidade e credibilidade.

Vincent Thian - 13.mar.2017/AP
Bandeira norte-coreana tremula na embaixada na Malásia; China aproveita briga para crescer na Ásia
Bandeira norte-coreana tremula na embaixada na Malásia; China aproveita briga para crescer na Ásia

Mesmo que eles tivessem dúvidas sobre a afinidade de um presidente com a China, se ele fosse considerado "kaopu", ou confiável, as autoridades chinesas podiam esperar certa estabilidade, mesmo nos desacordos mais espinhosos.

Trump é cada vez mais visto na China como não confiável, ou "bu kaopu". Sua declaração nesta semana de que a Coreia do Norte "receberá fogo e fúria como o mundo nunca viu" caso continue ameaçando os EUA com mísseis balísticos intercontinentais armados de ogivas nucleares só aprofundou essa percepção, segundo analistas.

Em vez de divulgar essa opinião na mídia estatal ou em comentários oficiais, porém, os líderes chineses estão descontraídos, contentes em ver a credibilidade de Trump tropeçar entre os aliados e os adversários dos EUA igualmente, dizem os analistas.

"Os chineses não gostam do programa nuclear da Coreia do Norte, mas a situação atual serve a seus interesses em longo prazo de desgastar a liderança americana, porque oferece um novo conjunto de circunstâncias em que os EUA demonstram fraqueza", disse Hugh White, um ex-estrategista de defesa do governo da Austrália.

A ameaça de Trump perturbou especialmente os principais aliados dos EUA na Ásia, Japão e Coreia do Sul, adversários e vizinhos da Coreia do Norte, que fazem pressão cada vez mais intensa para adquirir suas próprias armas nucleares para contrabalançar as de Pyongyang.

A China e o Japão não são nada próximos. Mas a China está tentando melhorar suas relações com a Coreia do Sul e vê oportunidade lá, enquanto Trump ameaça ações preventivas contra a Coreia do Norte, o que seria uma heresia para o governo liberal do novo presidente sul-coreano, Moon Jae-in.

Tentativas do secretário de Estado, Rex Tillerson, e do secretário da Defesa, Jim Mattis, de calibrar os comentários de Trump não aliviaram o problema de credibilidade que a China pretende explorar, disseram analistas.
O comentário de Trump foi o exemplo mais claro de um padrão recente em Washington, disse White.

Com frequência, explicou ele, os EUA declararam que usariam a força para impedir que algo aconteça —como a expansão chinesa no mar do Sul da China ou, durante o governo do presidente Barack Obama, o uso pela Síria de armas químicas e não o fizeram. "As idiossincrasias de Trump ampliam essa mensagem dez vezes", disse White.

A reação oficial chinesa aos comentários de Trump foi moderada. O Ministério das Relações Exteriores reiterou pontos comuns sobre a disputa com a Coreia do Norte: que ela deve ser resolvida com diplomacia e que todas as partes devem evitar agravar a situação.

Em parte, a contenção dessa resposta se deveu ao fato de que os líderes chineses estão atualmente mais concentrados na política interna do que na externa, disseram analistas.

O presidente Xi Jinping e outras autoridades graduadas estão em um retiro anual em Beidaihe, um balneário a leste de Pequim, onde as maquinações políticas são mais intensas que de hábito neste ano.

Xi deverá finalizar a seleção dos novos líderes chineses para os próximos cinco anos, que deverá ser anunciada em um congresso nacional que poderá ser convocado já no próximo mês.

IVANKA E JARED

Também pode haver um motivo de agenda para a reação morna da China. A filha de Trump, Ivanka, e seu marido, o assessor da Casa Branca Jared Kushner, deverão visitar o país no próximo mês com seus filhos.

Kushner é um contato importante da Casa Branca com a China, e Pequim está fazendo um esforço considerável para garantir que a visita transcorra tranquilamente. A visita também é considerada uma operação de planejamento da viagem do próprio Trump ao país, em novembro.

Imagens de Kushner com a mulher e os filhos em um jantar de família com Xi em sua casa em Pequim, Zhongnanhai, encaixariam bem no manual de Xi de parecer ter "o mundo em sua órbita apropriada, ao redor dele", disse Douglas Paal, vice-presidente da Fundação Carnegie para a Paz Internacional.

Para a China, a Coreia do Norte não é a única questão problemática com os EUA sobre a qual a credibilidade do governo Trump falhou recentemente. Na semana passada, a China parece ter escapado por pouco de tarifas comerciais punitivas dos EUA.

A Casa Branca estaria considerando uma investigação de supostas violações chinesas à propriedade intelectual dos EUA, o que poderia ter causado um aumento das tarifas sobre as importações chinesas.

Mas o plano parece ter sido abandonado porque o governo precisava do apoio da China no último fim de semana para as duras novas sanções da ONU contra a Coreia do Norte.

"Os chineses imaginam que as 301 medidas citadas estão suspensas até que a família Trump viaje a Pequim", disse Paal, referindo-se à seção da Lei de Comércio de 1974 que o governo americano pretendia usar para punir a China.

De modo geral, a liderança chinesa —que está acostumada à beligerância com a Coreia do Norte, seu aliado agora afastado— não acredita que Trump realmente poria em prática a ameaça de atacar a Coreia do Norte, disse Yun Sun, um membro sênior do programa de Leste da Ásia no Stimson Center.

A China escutou três gerações de bravatas dos líderes da Coreia do Norte, incluindo o atual, Kim Jong-un, por isso a linguagem grandiosa e alarmista não é novidade para eles, disse ela. É comum que o Norte fale em "transformar Seul em um mar de fogo e um monte de cinzas", comentou ela, referindo-se à capital da Coreia do Sul.

E enquanto a Coreia do Norte e os EUA dificilmente são iguais, a China provavelmente desdenha da mesma forma da "guerra retórica" de Trump contra o Norte, disse Sun.

"Uma impressão marcante é como a China vê com pouca credibilidade as ameaças da Coreia do Norte ou de Trump", disse ela, acrescentando: "Eu não acho que os chineses estejam perdendo o sono hoje".

Pelo menos externamente, os líderes chineses parecem estar reagindo com calma às palavras de Trump, porque eles compreendem que não precisam ser levadas a sério, disse White, o ex-estrategista de defesa da Austrália. Isso em si é um grande problema para os EUA, especialmente porque eles concorrem com a China por influência na Ásia, explicou ele.

"Trump está fazendo ameaças vazias à Coreia do Norte", disse White. "É verossímil dizer que os EUA vão atacar a Coreia do Norte se a Coreia do Norte realmente atacar os EUA ou seus aliados, como disse Mattis. Mas não é verossímil ameaçar atacar se a Coreia do Norte continuar fazendo ameaças verbais aos EUA."

A China se beneficiaria se Trump realmente começasse uma guerra com a Coreia do Norte? "Se os EUA tiverem uma vitória rápida e decisiva, será uma grande derrota para a China", disse White.

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

Editoria de Arte/Folhapress

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