Folha de S. Paulo


Para Putin, centenário da Revolução Russa não deve ser festejado

O Politburo soviético governante ascendia o mausoléu de Lênin na praça Vermelha uma vez por ano para uma cerimônia que comemorava o aniversário da Revolução Bolchevique de 7 de novembro de 1917.

O Dia da Revolução era feriado público, ostensivamente uma ocasião festiva. Mas, olhando para os tanques, canhões, mísseis e soldados que passavam abaixo, os líderes soviéticos pareciam inexplicavelmente carrancudos.

Em minha experiência –vivi em Moscou na década de 1980–, o cidadão russo comum não se comovia muito com o Dia da Revolução.

Era agradável ter um feriado. Mas os slogans comunistas bombásticos que acompanhavam o evento anual na praça Vermelha eram vazios de sentido para a maioria das pessoas, incluindo, com o passar dos anos, os membros do partido.

Em contraste marcante, os russos sentiam emoções fortes em outro feriado público soviético: o Dia da Vitória, que comemorava a derrota da Alemanha nazista em 9 de maio de 1945. Esse aniversário era cheio de significado para as pessoas, comunistas ou não.

Um quarto de século após o fim da União Soviética, o Dia da Vitória ainda é feriado público e os russos ainda se orgulham de seu triunfo na Segunda Guerra Mundial.

Essa vitória é uma pedra de toque de sua identidade moderna. Representa um episódio raro de união nacional em um século 20 marcado por revoluções, guerra civil, ditadura, terror do Estado, fome generalizada provocada pelo homem e outras provações extraordinárias.

As atitudes dos russos em relação a 1917 –a Revolução de Fevereiro que depôs o czar Nicolau 2º e a Revolução de Outubro que levou os bolcheviques ao poder– são mais ambíguas.

Em pesquisa divulgada em abril, o centro Levada, o mais respeito instituto de pesquisas da Rússia, informou que 48% dos entrevistados tinham uma visão principalmente ou muito positiva da revolução bolchevique ou muito ou principalmente negativa (cerca de 31%), e 21% tiveram dificuldade em formular uma opinião.

A ambiguidade do público aponta para, por um lado, uma percepção instintiva de que 1917 teve aspectos positivos e negativos, e, por outro, para a atitude hesitante e mal definida do Estado russo sob a égide do presidente Vladimir Putin.

Considere a abdicação do czar no inverno de 1917. Após o colapso do comunismo, a Igreja Ortodoxa Russa canonizou Nicolau e sua família, em grande parte em reação ao fim dado aos Romanov.

Em um ato premeditado de violência que refletiu a cultura armada agressiva da primeira fase do comunismo e a selvageria da guerra civil de 1917-22, os bolcheviques assassinaram o czar e sua família em julho de 1918.

Mas o fato de repudiarem esse massacre não impede os russos de entender que a queda do czarismo não foi algo negativo. Ela ofereceu a perspectiva, no início de 1917, de mais liberdade e justiça social em um país que não tivera nenhuma dessas coisas havia séculos.

Assim como na época as elites políticas, os revolucionários, os soldados rasos e os trabalhadores industriais se alegraram com o fim do czar ultrarreacionário, entre os russos de hoje é difícil discernir muita nostalgia pelos Romanov.

Na pesquisa do centro Levada, 52% dos entrevistados descreveram a derrubada da autocracia como "não tendo sido uma grande perda", contra 34% que tinham opinião contrária.

A Revolução Bolchevique é outra coisa, contudo. Para muitos russos, a tomada do poder por Vladimir Lenin é inseparável dos 20 anos subsequentes de governo comunista.

Sergei Karpukhin /Reuters
O presidente russo, Vladimir Putin, na cerimonia de abertura do show aéreo MAKS 2017, que acontece até 23 de julho, em Jukovsky
O presidente russo, Vladimir Putin, na cerimônia de abertura do show aéreo MAKS 2017, em julho

Esse período abrangeu não apenas os horrores da guerra civil, mas também a emergência da tirania de Josef Stalin, culminando na morte de milhões de pessoas em decorrência da coletivização agrícola forçada e do Grande Terror dos anos 1930. Essas agonias estão gravadas a fundo na história de cada cidade e vilarejo da Rússia.

Para Vladimir Putin, 1917 se destaca como um momento de desordem política e social tremenda. O Estado estava enfraquecido e incapaz de exercer controle. Por isso, para Putin, 1917 é um ano inapropriado para ser festejado.

Quando chegou ao poder, em 2000, Putin priorizou a reconstrução de um Estado forte. Ele buscou aprovação para isso, contrastando sua restauração da ordem com o caos que cercou a desintegração da União Soviética e os anos anárquicos e libertários sob a égide de Boris Ieltsin, o primeiro líder pós-comunista da Rússia.

Mas existe uma razão mais profunda por que 1917 não é um dos anos favoritos de Putin. Foi uma época em que as massas russas tomaram a iniciativa, por uma vez na vida. Durante a Guerra Fria, muitos historiadores ocidentais descreveram a Revolução Bolchevique como o golpe de Estado ilegítimo de uma seita política fanática.

Os bolcheviques eram extremistas, sem dúvida, mas no verão e outono de 1917 eles conseguiram o apoio cada vez mais amplo das forças armadas e do operariado russo.

Em última análise, as revoluções de Fevereiro e de Outubro expressaram a insatisfação e radicalização profundas da sociedade russa. São "batatas quentes" históricas para Putin, para quem agitação social, oposição política e dissensão espontânea são palavrões.

As conotações indesejáveis de 1917 explicam por que, no dia 7 de novembro do ano passado, Putin organizou uma parada que reproduziu a de 7 de novembro de 1941. Naquela ocasião, tropas soviéticas marcharam pela praça Vermelha e de lá foram combater os nazistas. Com essa cerimônia, Putin sugou o bolchevismo da Revolução Bolchevique e a substituiu pelo nacionalismo da Grande Guerra Patriótica, como o conflito de 1941-45 é conhecido na Rússia.

Um dia é possível que a Rússia use o aniversário de uma revolução bolchevique para refletir sobre os perigos dos sistemas políticos opressores. Mas não aposte que isso vá acontecer no futuro próximo.

Tradução de CLARA ALLAIN


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