Folha de S. Paulo


Trump quer processar universidades que usam ação afirmativa

O governo Trump está se preparando para redirigir recursos da divisão de direitos civis do Departamento da Justiça para investigação de universidades, e possível ação judicial, por políticas de ação afirmativa para admissões consideradas discriminatórias contra candidatos brancos, de acordo com um documento obtido pelo "New York Times".

O documento, um anúncio interno dirigido à divisão de direitos civis, busca advogados do departamento interessados em trabalhar para um novo projeto de "investigação e possível litígio relacionado a discriminação racial deliberada em admissões a faculdades e universidades".

Jonathan Ernst/Reuters
O secretário de Justiça dos Estados Unidos, Jeff Sessions, durante depoimento no Comitê de Inteligência do Senado, no Capitólio, em Washington
O secretário de Justiça dos EUA, Jeff Sessions, durante depoimento no Senado

O anúncio sugere que o projeto será conduzido pelo comando da divisão, ocupado por pessoal indicado por Trump, e não pela seção de oportunidades educacionais, cuja equipe é formada por funcionários públicos de carreira e usualmente se encarrega de assuntos envolvendo escolas e universidades.

O documento não identifica explicitamente quem o Departamento da Justiça vê como em risco de discriminação por conta de políticas de ação afirmativa nas admissões. Mas a terminologia adotada, "discriminação racial deliberada", enquadra diretamente os programas projetados para levar mais alunos de minorias às universidades.

Os defensores e os críticos do projeto dizem que ele claramente toma por alvo programas que oferecem a membros de grupos em geral desprivilegiados, como os negros e os latinos, vantagem sobre outros candidatos com resultados iguais ou melhores nas provas seletivas.

O projeto é mais um sinal de que a divisão de direitos civis está ganhando perfil conservador, sob o presidente Trump e o secretário da Justiça Jeff Sessions. Ele se segue a outras mudanças nas políticas do Departamento da Justiça quanto a direitos de voto, direitos dos homossexuais, e reforma policial.

Roger Clegg, que foi um dos dirigentes da divisão de direitos civis nos governos de Ronald Reagan (1981-89) e George Bush pai (1989-93) e hoje preside o Centro pela Igualdade de Oportunidades, uma organização conservadora, classificou o projeto como um desdobramento "muito bem vindo" e "há muito aguardado", à medida que os Estados Unidos se tornam um país cada vez mais multirracial.

"As leis dos direitos civis foram escritas deliberadamente para proteger todo mundo contra discriminação, e muitas vezes ocorre que não só os brancos como os norte-americanos de origem asiática sejam discriminados", ele disse.

Mas Kristen Clarke, presidente do Lawyers' Committee for Civil Rights Under Law, uma organização de ativistas progressistas, criticou o projeto de ação como "desalinhado com relação às tradicionais prioridades da divisão".

Ela apontou que a divisão de direitos civis havia sido "criada e lançada para combater os problemas únicos de discriminação que os grupos minoritários mais oprimidos de nossa nação enfrentam", executando trabalhos que, em muitos casos, ninguém mais pode fazer, por falta de recursos e experiência.

"Isso é muito perturbador", ela disse. "Seria um convite a muito caos e criaria histeria desnecessária nas faculdades e universidades, que podem passar a temer que o governo aja contra elas por conta de seus esforços para manter a diversidade em seus campi".

Sem cotas

O Departamento da Justiça se recusou a oferecer mais detalhes sobre seus planos ou a autorizar o diretor interino da divisão de direitos civis, John Gore, a conceder uma entrevista.

"O Departamento da Justiça não discute questões de pessoal, e por isso nos recusamos a comentar", disse Devin O'Malley, porta-voz do departamento.

A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que os benefícios educacionais que derivam de um corpo discente diversificado podem justificar o uso de raça como um dos muitos fatores em uma avaliação "holística", mas rejeitou cotas raciais abertas ou sistemas de pontuação para admissão que confiram pontos diferentes a raças diferentes. Mas o que isso autoriza em termos práticos nas universidades que recebem verbas federais, tanto públicas quanto privadas, é muitas vezes difícil de determinar.

Gabo Morales-19.abr.11/Folhapress
CAMBRIDGE, MA, USA, 19-04-2011: Vista do campus da Harvard University em Cambridge, Massachusetts, EUA, em 19 de Abril de 2011. (Foto: Gabo Morales)
O campus da Universidade Harvard, em Massachusetts

Clegg disse que sua expectativa é de que o projeto concentre suas atenções na investigação de queixas que o Departamento da Justiça receba sobre qualquer programa universitário de admissão.

Ele também sugeriu que o projeto poderia observar grandes diferenças de resultados e no percentual de abandono de cursos, entre as diferentes raças dentro dos corpos discentes, o que segundo ele seria prova de que os encarregados das admissões estão dando peso excessivo à raça dos candidatos, e violando o limite imposto pela Suprema Corte.

Alguns desses dados, ele disse, podem estar disponíveis no Escritório de Direitos Civis do Departamento da Educação, que não respondeu a pedidos de comentários.

O julgamento mais recente da Suprema Corte sobre um caso de políticas de ação afirmativa para admissão aconteceu em 2016, quando ela aprovou por quatro votos a três um programa da Universidade de Austin que seguia critérios raciais. Mas há diversos processos que desafiam esse tipo de prática pendentes, contra instituições importantes como a Universidade Harvard e a Universidade da Carolina do Norte. O Departamento da Justiça não se posicionou sobre esses casos.

O início iminente do projeto de ação afirmativa - os advogados da divisão interessados em trabalhar nele devem submeter seus currículos até 9 de agosto, segundo o anúncio - é mais um passo em uma série de mudanças envolvendo as leis de direitos civis, desde a posse de Trump.

Em um processo que contesta a severa leis texana de identificação de eleitores, o Departamento da Justiça inverteu sua posição, abandonando o parecer de que a lei era intencionalmente discriminatória e declarando posteriormente que os problemas da lei haviam sido resolvidos.

Sessions também deixou claro que não imporia reformas compulsórias a departamentos de polícia problemáticos, e iniciou uma revisão abrangente nos programas de reforma compulsória em curso.

Na semana passada, o Departamento da Justiça interveio por conta própria em um processo por discriminação no emprego. O departamento instou um tribunal de recursos a não interpretar a cláusula que proíbe discriminação por sexo, na Lei de Direitos Civis de 1964, como cláusula que proíbe discriminação por orientação sexual. O governo Obama havia evitado assumir uma posição clara sobre o assunto.

Vanita Gupta, que comandou a divisão de direitos civis no segundo mandato de Obama e agora preside a Conferência de Lideranças sobre os Direitos Civis e Humanos, uma organização progressista, apontou que as petições encaminhadas pelo Departamento da Justiça quanto ao processo por discriminação eleitoral no Texas e em casos de direitos dos homossexuais foram todos assinados apenas pelos indicados políticos do governo Trump, da mesma forma que o projeto sobre ação afirmativa será aparentemente dirigido pelo comando político da divisão.

"O fato de que os dirigentes políticos, e não os funcionários de carreira da seção que fiscaliza as leis de combate à discriminação na educação, comandarão o projeto sugere que a agenda a ser adotada envolve solapar a diversidade no ensino superior mas sem a necessidade de declarar esse objetivo", disse Gupta.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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