Folha de S. Paulo


Pesquisa vai investigar alto índice de brasileiros autistas no Japão

David Guttenfelder - 18.nov.1999/Associated Press
ORG XMIT: 450301_1.tif Criança imigrante brasileira (nissei) estuda no Colégio Pitágoras, em Ota, Japão, onde as aulas são em português e o japonês é uma das disciplinas. Gabriela Yukari, a primary school student reads a Portuguese language book during class at the Colegio Pitagoras Brazilian School in Ota, Japan, Nov. 18,1999. Yukari is unable to read Japanese, and speaks only a few words of Japanese. All classes at the school are in Portuguese with Japanese being one of the subjects taught. Hundreds of thousands of Brazilians, most of them of Japanese descent, have poured into the country in the past decade with short-term plans, only to end up staying for years. (AP Photo/David Guttenfelder)
Sem falar japonês, filha de imigrantes brasileiros estuda em escola brasileira em Ota, no Japão

Quantos são os brasileiros que não conseguem acompanhar as escolas públicas japonesas? Que porcentagem deles são diagnosticados como autistas? É verdade que a proporção de alunos brasileiros considerados autistas é mais que o triplo da de japoneses?

Atrás de respostas científicas para indícios ainda extraoficiais, a Embaixada do Brasil no Japão divulgou um edital de pesquisa, com inscrições até 19 de setembro.

Reportagem da Folha mostrou que dificuldades de adaptação dos filhos de decasséguis (imigrantes brasileiros no Japão) levam ao fracasso escolar das crianças.

SEM MEDO DA ESCOLA
Filhos de decasséguis que voltaram ao Brasil em atividade do projeto Kaeru

Com os pais ocupados em jornadas de até 16 horas por dia em indústrias, algumas delas acabam ficando duplo-analfabetas: sem saber ler ou escrever nem em japonês nem em português.

Segundo levantamentos feitos por organizações não governamentais, 6% dos filhos de decasséguis são diagnosticados como autistas pelo sistema público escolar japonês, enquanto a taxa é de 2% entre os japoneses (na média global, segundo a Organização Mundial de Saúde, 0,62% das crianças recebem esse diagnóstico).

FORA DOS TRILHOS

Sob o guarda-chuva do "espectro autista" estão classificados distúrbios de comunicação e comportamento que variam de leve a severo.

A preocupação de entidades, pais e da embaixada é que, no Japão, o aluno que recebe esse diagnóstico é encaminhado para salas especiais.

"Acaba com a vida da criança. Nunca mais ela vai conseguir participar da escola normal", diz Norberto Mogi, presidente do Serviço de Assistência aos Brasileiros no Japão (Sabja), que fará a seleção dos projetos.

"Os pais que vivem aqui no Japão estão preocupados há muitos anos, mas até agora só temos dados parciais sobre o problema."

Ele considera possível falhas no diagnóstico pela dificuldade de comunicação entre as crianças brasileiras e os avaliadores japoneses.

Segundo Mogi, na região de Hamamatsu, em que o consulado tem um relacionamento mais próximo com as autoridades japonesas, o registro de casos é menor e filhos de imigrantes já começam a chegar às faculdades.

POLÍTICAS PÚBLICAS

Ter um dimensionamento preciso do problema é fundamental para apoiar políticas públicas, diz Ivan Carlo Padre Seixas, diplomata responsável por Comunidade na Embaixada do Brasil em Tóquio.

O governo japonês, que informa haver exatos 80.119 alunos não japoneses em suas escolas, diz desconhecer quantos deles são brasileiros.

Pesquisa oficial mais recente sobre dificuldades com o idioma japonês aponta que há nesse grupo quase 9.000 alunos cujo primeira língua é o português.

Mas, sem o total de estudantes brasileiros, é impossível estimar a gravidade do problema.

"Não perguntamos às escolas o número dos que não têm problemas", respondeu o ministério à consulta da Folha sobre o número total de alunos filhos de brasileiros.

O ministério afirma também não ter dados sobre quantos filhos de imigrantes deixam o sistema público impelidos pela dificuldade com o japonês.

"Nossa orientação é que as escolas aceitem gratuitamente todos os estrangeiros cujos pais queiram matricular no sistema japonês, e que dêem igualdade de oportunidades e acesso a educação."

A pesquisa brasileira deve começar em janeiro de 2018 e será financiada com recursos levantados pelo estande do Brasil no bazar beneficente da Associação de Damas Latino-Americanas do Japão.

Segundo Seixas, ainda não há estimativa de custo. O pagamento será feito pelo Sabja, que organiza os trabalhos.

LACUNAS NOS DADOS

Seixas diz que a embaixada espera que o governo japonês dê acesso aos dados necessários. "Sem essa cooperação, não será possível concluir nem sequer a primeira fase da pesquisa."

Ele relata que o projeto vem sendo discutido há nove meses com o Ministério da Educação do Japão.

Uma das informações que o governo brasileiro espera obter (embora não seja o foco da pesquisa) é o número de brasileiros na rede pública de educação japonesa.

Há no país asiático cerca de 40 mil crianças brasileiras, das quais 3.800 estão em escolas que ensinam em português. Somadas às cerca de 9.000 identificadas pela pesquisa japonesa sobre problemas com idiomas, chega-se perto de 13 mil.

Falta saber onde estão 27 mil filhos de decasséguis, dentre os quais estão os duplo-analfabetos.

O Plano Nacional de Educação do Brasil não cita ações que atendam crianças brasileiras fora de seu país natal, e o governo japonês não obriga os pais imigrantes e colocar seus filhos na escola.

PRIORIDADES

Com uma das menores taxas de estrangeiros do mundo, o Japão controla rigorosamente a entrada de imigrantes e desincentiva a miscigenação.

O envelhecimento da população, porém, tem aumentado a necessidade de trabalhadores de outros países.

Enquanto brasileiros levantam a hipótese de que o Japão prefira que os estrangeiros estudem em escolas de suas comunidades, para depois voltarem a seu país natal, o Ministério da Educação do Japão dá declarações em sentido contrário.

"Para a economia e a estabilidade social do Japão, é muito relevante que os filhos de estrangeiros se adaptem suavemente à sociedade japonesa por meio do sistema educacional", afirmou o Ministério da Educação à Folha.

Segundo o órgão, os descendentes de imigrantes podem adquirir "conhecimentos e habilidades necessárias para serem autossuficientes econômica e socialmente e, como consequência, tornarem-se membros efetivos da sociedade japonesa".

APOIO NÃO GOVERNAMENTAL

Enquanto a pesquisa não é feita, o apoio aos filhos de decasséguis é feito principalmente por ONGs.

O Sabja, que dá apoio psicológico e orientações às famílias de imigrantes, começará a distribuir um guia sobre autismo ilustrado de forma voluntária por Maurício de Sousa.

"Será o primeiro de 12 volumes, de linguagem bem simples, sem termos técnicos, para que os pais entendam e reconheçam os problemas."

O Projeto Kaeru, que ajuda na integração escolar de filhos de decasséguis de volta ao Brasil, também faz frequentemente palestras para as famílias de imigrantes no Japão.

O foco é a importância da educação, mas os diagnósticos de autismo também são abordados.

"A maioria dos pais fica perdida, sem saber o que fazer com os filhos diagnosticados, sem ter onde e a quem recorrer. Outros não entendem bem o significado de ter um filho 'autista' ", diz a psicóloga Kyoko Nakagawa, coordenadora do projeto.

Desde o final dos anos 1980, Kyoko acompanha a situação dos decasséguis no Japão e das famílias que regressam de lá.

No Brasil, o projeto acompanha 82 crianças que eram estudantes regulares no Japão, mas, ao voltar para o país natal, enfrentaram dificuldades para se adaptar à escola.


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