Folha de S. Paulo


EUA começam a responsabilizar traficantes pelas mortes por overdose

John Moore/Getty Images/AFP
Dependente químico injeta heroína nos EUA; país debate criação de centros para consumo legal da droga
Dependente químico injeta heroína nos EUA

O traficante conhecido como EZ estacionou diante do ponto de seu fornecedor em Staten Island, voltou-se ao freguês ao seu lado e, segundo promotores, lhe disse em tom de quem se gaba que eles estavam prestes a comprar a heroína mais potente do mercado. Tão forte que um saquinho usado pouco tempo antes pelo pai de um amigo dele havia matado o homem.

"Não é tudo ótimo", disse o traficante, cujo nome real é Stephen Cummings, aludindo à potência da heroína "batizada" com fentanil.

O freguês era um policial à paisana que trabalhava com a promotoria pública do condado de Richmond para tentar prender um grupo de traficantes em atividade na costa norte da ilha. O policial usava microfone escondido, e a conversa entre ele e o traficante gravada em 3 de janeiro, falando da morte por overdose de Richard P. Zeifert, virou a prova número um usada no indiciamento de um suspeito traficante de Nova York que é alvo de várias acusações criminais, incluindo homicídio, o que é raro no caso de traficantes.

Enquanto a heroína e seu "primo" sintético, o fentanil, levam cada vez mais vítimas ao necrotério, os promotores estão se aventurando em território legal nunca antes navegado, como fizeram na década de 1970, para combater o flagelo.

As acusações criminais de homicídio doloso agravado e homicídio por negligência criminal registradas contra Cummings seguem os moldes de estratégias semelhantes empregadas recentemente por promotores no interior de Nova York e em Long Island. E também emulam uma ação movida há três anos pela promotora especial de narcóticos de Nova York Bridget G. Brennan, contra um médico especialista em controle da dor, Stan Xuhui Li, sentenciado a mais de dez anos de prisão.

Condenar um médico por provocar a morte por negligência de seus pacientes vai muito além de provar que um traficante de drogas fez o mesmo com um freguês, mas reflete a mesma abordagem, em que promotores combinam as leis atuais com novas ferramentas investigativas para combater a maré crescente de mortes ligadas a opiáceos. O promotor público do condado de Richmond, Michael E. McMahon, já aplicou essa tática em mais de 240 casos de overdose.

"Não estamos vencendo esta guerra", disse Brennan. "Precisamos fazer mais."

Os casos são difíceis de processar. Os promotores precisam vincular as provas médicas relativas às drogas consumidas a uma overdose fatal, algo que exige uma dissecação cuidadosa dos resultados dos exames de toxicologia. E precisam apresentar provas de que o traficante tinha conhecimento dos riscos associados às drogas mas as vendeu assim mesmo, algo que, segundo advogados de defesa, contraria o objetivo dos traficantes, que é angariar mais fregueses, e não matá-los.

Pesando essas táticas, os júris precisam levar em conta questões espinhosas, diferenciando entre dependentes químicos e predadores nas fileiras dos traficantes e decidindo se um traficante deve ser responsabilizado pela morte de uma pessoa que ingeriu drogas sabidamente perigosas.

Michael Pacheco, o irmão do traficante Stephen Cummings, disse que seu irmão mais velho usa heroína e precisa de reabilitação, não de ser encarcerado. Pacheco disse que foi a dependência de seu irmão que levou à sua única prisão anterior, em janeiro, por posse de drogas.

"Não deveriam tê-lo detido sem fiança", disse Pacheco, 28 anos, sentado na barbearia EZ Does It, da qual é proprietário. Cummings é barbeiro no estabelecimento. "E não deveriam acusar a ele, que é adicto, de homicídio doloso."

Joyce Fobbs, 58, e seu filho Anthony White estão entre as 15 pessoas detidas por envolvimento no caso. Fobbs disse que ela e seu filho também são dependentes de heroína e precisam de ajuda. Ela considera que a importância do caso de Zeifert foi exagerada. O promotor McMahon descreveu o caso como "Operação Corte Final".

Outro réu no processo, Raymond Lugo, 52 anos, foi detido com seu irmão, Nelson Lugo. Ele disse que o processo lhe pareceu um artifício legal cuja finalidade seria de transmitir um recado aos traficantes.

"Por que nos usaram como cobaias?", ele perguntou.

McMahon reconheceu que o processo contra Cummings será difícil de sustentar no tribunal, mas disse que está longe de ser fabricado. Em vez disso, foi algo que cresceu naturalmente a partir de duas investigações distintas ligadas pela overdose de Zeifert.

Em 23 de dezembro de 2016, investigadores abriram uma investigação sobre a morte de Zeifert, analisando seu telefone e outras provas encontradas no local da morte, interrogando suspeitos e testemunhas e investigando os resultados dos exames toxicológicos pedidos na autópsia. Então, disse McMahon, depois de Cummings ter dito ao policial à paisana em 3 de janeiro que havia avisado Zeifert, 52, sobre a potência das drogas, os dois inquéritos foram unidos em um só.

McMahon disse que tem confiança nos jurados e em sua equipe para "apresentar este argumento e provar, sem deixar margem a dúvida, que este réu específico provocou uma morte ao vender drogas que ele sabia serem venenosas".

Mario Gallucci, o advogado de Cummings, considerou que as declarações que os promotores atribuíram a seu cliente não têm valor. Embora tenha elogiado McMahon por adotar uma abordagem nova à lei, Gallucci disse que vai combater as acusações feitas a Cummings, 32, incluindo a de que ele trafica drogas.

Autoridades dizem que estão pedindo as sanções mais punitivas, fato que levou a um esforço para vincular quadrilhas do tráfico a violência, especialmente em ações de combate a gangues.

Segundo McMahon, o caso atual não constitui exceção: os 15 réus no processo já estiveram envolvidos anteriormente em 18 trocas de tiro e 19 prisões por uso ou posse de armas. Mas, segundo os promotores, embora alguns dos réus sejam integrantes das gangues Bloods e Latin Kings, sua lealdade às gangues não foi um fator no caso analisado.

O indiciamento dos réus, fruto de uma investigação realizada ao longo de 11 meses, refletiu um altamente ativo comércio de rua de heroína, fentanil, buprenofirna e cocaína nos bairros de Port Richmond, New Brighton e West Brighton, em Staten Island.

Os traficantes são ouvidos combinando transações e então indo para esquinas, apartamentos e outros pontos para vender seus produtos, segundo o indiciamento. De acordo com a promotoria, um dos pontos de maior atividade de drogas era a barbearia EZ Does It, na avenida Forest. Pacheco negou que drogas fossem vendidas no local.

Para Pacheco, a história toda é uma tragédia humana. Ele disse que seu irmão e Ziefert foram à casa de Ziefert em dezembro para se drogarem. Ziefert teve morte acidental por intoxicação aguda devido aos efeitos combinados de etanol e fentanil, conforme averigou mais tarde o instituto médico legal.

A sogra de Ziefert, Alice M. Pedersen, estremeceu quando se lembrou da morte dele. Pintor de paredes, Ziefert se mudara para a casa dela em abril de 2016, após a morte da filha dela. Pedersen sabia que ele bebia e que tinha consumido heroína no passado, mas acha que a combinação perigosa de drogas que ele comprou na rua não pode continuar a circular.

"Era um veneno", disse Pedersen, 76. "Não foi a heroína, mas o veneno contido na heroína. O que leva uma pessoa a colocar veneno numa droga e vender a droga a alguém que conhece? Como alguém é capaz de fazer isso?"

Tradução de CLARA ALLAIN


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