Folha de S. Paulo


Por que a Rússia não se preocupa com as armas nucleares de Kim Jong-un?

AFP
This picture taken and released on July 4, 2017 by North Korea's official Korean Central News Agency (KCNA) shows North Korean leader Kim Jong-Un (R) reacting after the test-fire of the intercontinental ballistic missile Hwasong-14 at an undisclosed location. North Korea declared on July 4 it had successfully tested its first intercontinental ballistic missile -- a watershed moment in its push to develop a nuclear weapon capable of hitting the mainland United States. / AFP PHOTO / KCNA VIA KNS / STR / South Korea OUT / REPUBLIC OF KOREA OUT ---EDITORS NOTE--- RESTRICTED TO EDITORIAL USE - MANDATORY CREDIT
O ditador Kim Jong-un comemora o lançamento do míssil Hwasong-14 no último dia 4

O último 4 de julho foi um dia ruim para a política de Washington para a Coreia do Norte, e não só por causa do lançamento bem-sucedido de um míssil balístico intercontinental por Pyongyang. Naquele dia também houve uma reunião em Moscou entre o presidente russo, Vladimir Putin, e seu homólogo chinês, Xi Jinping, em que eles declararam conjuntamente seu apoio a uma desescalada na disputa coreana que somaria o congelamento do desenvolvimento nuclear e de mísseis norte-coreano com a suspensão em grande escala dos exercícios militares entre Estados Unidos e Coreia do Sul.

Washington continua insistindo em uma abordagem diferente. O governo americano passou os últimos vários meses aumentando a pressão retórica sobre Pequim para ajudar a conter os programas nuclear e de mísseis da Coreia do Norte. Na semana passada, depois que o governo Trump começou a concluir que a China agindo sozinha não poderia ou desejaria resolver o impasse nuclear, Washington impôs sanções a vários indivíduos e firmas chinesas que estariam fazendo negócios com o vizinho.

O governo Trump, porém, também se esforçou para envolver a Rússia na busca por uma solução. Depois que um míssil norte-coreano pousou perto do porto russo de Vladivostok, na costa do Pacífico, em maio, o governo emitiu um comunicado em que declarou: "Com o impacto do míssil tão próximo de solo russo —na verdade, mais próximo da Rússia que do Japão—, o presidente não pode imaginar que a Rússia esteja satisfeita".

Na verdade, Moscou não está muito preocupada com os mísseis norte-coreanos, embora preferisse ver uma península da Coreia desmilitarizada. A Rússia acredita que a única solução para a disputa coreana são negociações com Pyongyang que resultem em garantias de segurança para o regime de Kim Jong-un. Moscou apoia a imposição de limitações ao programa nuclear do Norte, mas teme as sanções e se opôs decididamente à mudança de regime. Isso a coloca em oposição aos EUA —e atua como empecilho fundamental aos esforços internacionais.

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Um motivo pelo qual a Rússia prefere uma política mais conciliatória em relação a Pyongyang é o interesse próprio. Em maio, na mesma semana em que Pyongyang lançou um míssil vagamente na direção de Vladivostok, a Coreia do Norte também lançou um novo serviço de barcas para a cidade portuária.

Apesar da preocupação ideológica de Pyongyang com a autarquia, há um número surpreendente de laços econômicos entre a Coreia do Norte e a Rússia. Os dois países negociam produtos como carvão e petróleo, que são particularmente valiosos para a Coreia do Norte, pobre em energia. As estatísticas são confusas, mas há muitos estudantes norte-coreanos na Rússia e milhares de trabalhadores de baixa qualificação, especialmente no Extremo Oriente russo. O volume de ligações econômicas hoje é limitado, embora alguns especialistas avaliem que o comércio com a Coreia do Norte possa crescer se as sanções americanas forem levantadas e Pyongyang decidir abrir sua economia.

OTIMISTA

O principal motivo para a Rússia ter adotado uma posição mais conciliatória em relação à Coreia do Norte, porém, é que o Kremlin interpreta o comportamento de Pyongyang de modo muito diferente que Washington ou seus aliados. A Rússia há muito tem uma visão mais animada da dinastia governante norte-coreana Kim do que os EUA, apesar de compartilhar uma pequena fronteira com o país. Nos primeiros anos da Guerra Fria, Pyongyang e Moscou compartilhavam a crença no comunismo, mas os dias de solidariedade ideológica há muito terminaram.

O Kremlin acredita que a dinastia Kim é estranha, é claro, mas também racional. Sim, Kim Jong-un tem armas nucleares. Mas os analistas russos pensam que Kim sabe que qualquer uso ofensivo dessas armas resultaria em um contra-ataque nuclear dos EUA, matando-o e destruindo seu país. Da perspectiva russa, a lógica da destruição mútua garantida que evitou o uso de armas nucleares durante a Guerra Fria é igualmente eficaz para evitar um ataque de Pyongyang. Assim, muitos analistas russos afirmam que o programa nuclear da Coreia do Norte ajuda a estabilizar a situação, dando a Pyongyang mais confiança em sua segurança e impedindo os EUA de lançar um ataque militar.

O governo russo tem outros motivos para adotar uma posição diferente de Washington sobre a questão da Coreia do Norte. Assim como Pequim, Moscou não tem interesse em ver o governo norte-coreano substituído por uma Coreia unida, aliada dos EUA. Juntamente com a China, o Kremlin criticou com ênfase a mobilização de mísseis de defesa americanos na Coreia do Sul. E enquanto Washington estiver concentrado no leste da Ásia dará menos atenção às disputas no espaço pós-soviético, que continua sendo a maior prioridade de Moscou. Acima disso, para Moscou é fácil assumir uma posição contrária à dos EUA sobre a Coreia do Norte, porque a China suportará o grosso da frustração americana pela intransigência de Kim.

De fato, na visão russa, os EUA merecem pelo menos tanta culpa quanto Pyongyang pelas tensões na península da Coreia. Nessa visão, os programas de armas da dinastia Kim são basicamente para autodefesa. "Pyongyang geralmente toma medidas reativas, mais que proativas", escreveu o importante analista de política externa russo Fyodor Lukyanov. "Sabendo o que aconteceu com Saddam Hussein [Iraque] e Muammar Gaddafi [Líbia], cujos destinos são prova de que blefar não é uma política inteligente, a Coreia do Norte criou um programa nuclear e de mísseis. (...) Sua própria presença torna inaceitavelmente alto o preço da potencial interferência estrangeira." Se Washington não tivesse ameaçado com a mudança de regime, afirmam muitos analistas russos, a Coreia do Norte não teria sentido necessidade de fabricar armas nucleares, para começar.

Graças às armas nucleares de Pyongyang, para não falar em suas muitas armas convencionais já ao alcance de Seul, a Rússia pensa que as ameaças de Trump de um ataque militar americano à Coreia do Norte são tão perigosas quanto qualquer coisa vinda da Coreia do Norte. Nem mesmo as sanções, na opinião da Rússia, deverão mudar a lógica por trás da busca por Pyongyang de armas nucleares, embora elas possam ter uma função de congelar os testes de novos desenvolvimentos. O Norte já provou que pode sobreviver à penúria e à devastação econômica. Por que, perguntam os analistas russos, os americanos pensam que sanções econômicas mais duras irão convencer Pyongyang a abandonar seu programa nuclear, a única defesa real que tem contra um ataque americano?

Isso coloca o peso da ação sobre Washington. Os EUA não assinaram um tratado de paz que pôs fim à Guerra da Coreia, comentam os russos, e continuam ameaçando Pyongyang militarmente. Depois do teste de míssil da Coreia do Norte nesta semana, Putin evitou criticar Pyongyang e apoiou o pedido da China para que Pyongyang e Washington mudem de rumo.

Frustrada com a falta de vontade e de capacidade da China de pressionar Pyongyang para que mude de rumo, Washington está avaliando outras opções. Deixar que a Coreia do Norte continue desenvolvendo e testando mísseis que poderiam atingir os EUA não é interessante, especialmente depois que Trump prometeu que uma Coreia do Norte nuclear capaz de atingir os EUA "não acontecerá!" Um esforço militar para retirar as forças nucleares de Pyongyang correria o risco de provocar uma guerra maior, incluindo a Coreia do Sul e o Japão.

Se Washington moderar seus objetivos na península da Coreia, aceitando o programa nuclear de Pyongyang e oferecendo garantias de segurança à Coreia do Norte, Moscou poderia participar da pressão contra o Norte para deter os testes de armas e o desenvolvimento de mísseis. Enquanto Washington insistir que uma solução militar ou mudança de regime continua sobre a mesa, porém, o Kremlin continuará trabalhando para colocar a culpa não só em Kim Jong-un, mas também em Donald Trump.

CONFLITO entre as COREIAs Tensão aumenta com testes de Pyongyang

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves


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