Folha de S. Paulo


Análise

Caso de Trump Jr. põe em xeque visão de mundo ultraconservadora

A revelação de que o filho, o genro e o ex-diretor de campanha de Donald Trump se reuniram com uma advogada russa ligada ao Kremlin que prometia informações "incriminadoras" contra Hillary Clinton caiu como uma verdadeira bomba em uma época em que passamos a ser quase imunes a elas.

Ali estava a prova de que membros que trabalharam para eleger o atual presidente se mostraram dispostos a fazer conluio com a Rússia para influenciar as eleições de 2016. No mínimo.

Carlos Barria/Reuters
O presidente Donald Trump experimenta chapéu em feira de produtos americanos na Casa Branca
O presidente Donald Trump experimenta chapéu em feira de produtos americanos na Casa Branca

E ninguém precisou contradizer os fatos: o próprio filho de Trump publicou tudo no Twitter.

Não muito tempo atrás, coisa de cinco ou dez anos, todas as principais agências de notícias teriam tratado esses fatos como manchete de primeira página e uma ameaça quase indefensável à presidência atual.

A facção conservadora e os eleitores republicanos poderiam discordar com algum detalhe em particular ou com os pontos de ênfase, mas sua visão de realidade —ou seja, do ocorrido e de sua significância— seria basicamente a da imprensa em geral.

Você teria que se aventurar no espaço político marginal dos programas de rádio de direita, no Drudge Report e nas publicações dissidentes como a Breitbart News para encontrar um ponto de vista alternativo que rejeitasse a base da história.

Agora não mais. Se olhar para o lado, é bem possível que você veja uma realidade alternativa na qual o mesmo conjunto de fatos é "arrumado" para compor uma narrativa totalmente diferente.

TRUMP PRESSIONADO - Os desdobramentos do suposto elo da equipe republicana com Moscou

Na Fox News, o apresentador Lou Dobbs ofereceu um belo exemplo disso, na noite da última quinta, quando descreveu a história dos e-mails de Donald Trump Jr., de olhos arregalados e voz intensa, da seguinte maneira: "Trata-se de um ataque explícito da esquerda, ou seja, do Partido Democrata, cujo objetivo é promover um golpe de Estado contra o presidente Trump com a ajuda da imprensa de esquerda."

Dobbs não é uma aberração insana isolada, mas sim um exemplo de como, ao longo dos últimos anos, o submundo conservador engoliu e aceitou canais de comunicação de direita mais bem estabelecidos como a Fox News.

A "mentalidade Breitbart" —belicosa, isolada, paranoica e determinada a impor seus próprios moldes nos eventos atuais, quaisquer que sejam os fatos— saiu da marginalidade direitista para ocupar o centro da política republicana.

E foi um processo que aconteceu naturalmente. "O pessoal tem um olho clínico para histórias importantes, principalmente aquelas que são relevantes para os conservadores e republicanos", Jeff Sessions, hoje o procurador-geral, me disse em 2015, explicando como o Breitbart News já moldava a opinião conservadora de raiz propagando seus conceitos nos meios aos quais os líderes partidários de Washington prestam pouca atenção.

"E se tornou incrivelmente influente. Tem radialista aí lendo as publicações do Breitbart todo dia. Dá para perceber nas entrevistas que fazem."

Houve alguns destaques ao longo do caminho, como a revolta populista da direita que matou a reforma da imigração bipartidária, em 2013, e a derrubada do presidente da Câmara, John Boehner, em 2015.

E, é claro, a ascensão de Trump, cujos ataques à imprensa em geral condicionaram seus defensores a considerar "notícia falsa" qualquer informação que lhe seja crítica ou à sua administração. Ele inclusive criticou a cobertura da ligação russa de seu filho, não para discordar dos fatos em si, mas porque vinham da "imprensa mentirosa".

Ainda não se sabe a consequência dessa transformação, mas ela fica evidente nos índices de aprovação do presidente. Apesar dos seis meses de caos na Casa Branca, pouquíssimas realizações legislativas e um escândalo envolvendo a Rússia que só faz crescer, os republicanos, na grande maioria, continuam apoiando Trump.

Embora em termos nacionais o apoio esteja abaixo dos 40 por cento, em termos partidários continua forte, flutuando na marca dos 85 por cento desde a posse. Esses números refletem uma mudança na predisposição republicana, da qual Trump é, ao mesmo tempo, a principal causa e o maior beneficiário.

E, pelo menos até agora, há poucos indícios de que essa anuência partidária esteja ameaçada de se desintegrar. Este mês mesmo, segundo fontes congressistas me disseram, os estrategistas democratas analisando o distrito decisivo, assumido momentaneamente pela maioria republicana e que deve ser o centro das atenções nas eleições intermediárias do ano que vem, ficaram chocados ao saber, através da pesquisa particular que fizeram, que o apoio a Trump é maior hoje do que no dia em que ele assumiu o poder.

Vários fatores foram levantados para tentar explicar a inesperada e inacreditável resiliência trumpiana. Uma linha de argumento reza que ele está sendo sustentado pelos legisladores republicanos que podem abandoná-lo se desconfiarem de sua capacidade de obtenção de resultados.

"O relacionamento foi sempre basicamente transacional; os republicanos do Congresso têm o poder de aprovar leis, Trump pode sancioná-las. É benefício para ambas as partes", afirmou o estrategista republicano Alex Conant para o RealClearPolitics em entrevista este mês.

Trump emparedado

Outra premissa justifica que os esforços de Trump para desacreditar a imprensa, repetido pela mídia direitista, eliminou de seus seguidores a capacidade de distinguir o que é real do que não é.

Ambas têm seus méritos, mas a transformação da mentalidade republicana vai além de notícias ou política. Andrew Breitbart, fundador do Breitbart News, gostava de dizer que "a política vem depois da cultura".

Cultura, aliás, que sempre foi a principal obsessão do submundo conservador de Breitbart e sua turma.

"Andrew sempre se mostrou mais interessado em mudar a cultura do que o que acontecia em Washington", uma vez me disse Steve Bannon, que administrava o Breitbart News e hoje é o principal estrategista da Casa Branca. (Ele se desligou do site em agosto passado para trabalhar na campanha de Trump.)

Um motivo para a visão alternativa da realidade ter se arraigado tão profundamente entre os conservadores é que eles parecem estar mais voltados para a cultura mais ampla.

Na semana passada, uma pesquisa do Centro Pew revelou que a maioria dos republicanos e independentes com queda republicana hoje acredita que a universidade —palco principal de nossas guerras culturais atuais tenha um efeito negativo no país. Em relação ao ano passado, esse número chegava a 45 por cento.

Se analisarmos o lado de lá, cerca de 75 por cento dos democratas e independentes com queda democrata afirmam que as universidades têm um efeito positivo no país.

Conforme a política norte-americana vai se tornando mais dividida e tribal, fica cada vez mais difícil fazer os eleitores abandonarem suas lealdades partidárias. Pelo menos até o momento, a notícia de que Donald Trump Jr. estava preparado para aceitar ajuda russa para subverter uma eleição não parece ter mudado esse estado de coisas.

Se você não é republicano, vê-los reagir às notícias é mais ou menos como testemunhar uma alucinação em massa, principalmente quando algum emissário de seu universo alternativo, tipo Kellyanne Conway, se teleporta para a CNN ou outro canal de notícias para dar seu depoimento.

Não se sabe quanto tempo isso vai durar. Mesmo na Fox News, apesar de pequenos, há indícios de que o escândalo da Rússia pode finalmente estar fazendo efeito, pelo menos para alguns. "É um conluio nocivo, que corrói completamente a história da Casa Branca", disse o analista Charles Krauthammer, que também comentou já ter sido simpático à linha do atual governo.

Porém, é claro que a facção conservadora também incluiu os chamados "NeverTrumpers" desde o princípio, cuja resistência às mudanças partidárias tem sido basicamente ignorada pela maioria.

As lambanças de Don Jr. serão um bom teste para a resiliência da nova visão de mundo republicana —e se o conselheiro especial Robert Mueller realmente encontrar prova da conspiração russa, ela será seguida por um teste para medir o que é preciso para sair do estado alucinatório.

JOSHUA GREEN é autor do ainda inédito "Devil's Bargain: Steve Bannon, Donald Trump, and the Storming of the Presidency" e correspondente nacional da Bloomberg Businessweek.


Endereço da página:

Links no texto: