Folha de S. Paulo


Opinião

Saga de Trump tem coleção estonteante de bobos e bufões

Irmãos maléficos dispostos a qualquer coisa por poder. Acordos secretos com inimigos confessos. O choque de um cadáver. Um muro. Prostitutas estrangeiras, armas de aluguel e cobras. Punhaladas nas costas, traição, acusações de falsidade. Passarinhos espiando e tagarelando. Um rei louco e maníaco e sua corte absortos em esquemas, envolvidos na mais fina seda e na mais deslavada imoralidade, reinando com total desconsideração pelo bem de seu povo.

A noite em Washington é escura e cheia de terrores. O jogo de Trump, ou "Game of Trump", trouxe uma ilegalidade pagã inédita na capital.

Elsa - 14.jul.2017/Getty Images/AFP
O presidente dos EUA, Donald Trump, assiste a jogo do Aberto dos EUA de Golfe na última sexta (14)
O presidente dos EUA, Donald Trump, assiste a jogo do Aberto dos EUA de Golfe na última sexta (14)

Até hoje, Donald Trump sobreviveu e prosperou com a filosofia adotada pelo personagem Mindinho (Little Finger) em "Game of Thrones": "O caos não é um buraco. O caos é uma escada".

Mas estarão essa mentira e a a corrupção descontroladas em seu reino vulgar prestes a engolir o Imperador do Caos? Será esse o triste fim do jogo para Cersei em Porto Real e Donald em Washington? Talento para se distrair no Twitter, como saberá o presidente meio Joffrey, não significa capacidade de andar no fogo.

As multidões crescem e gritam: "Vergonha. Vergonha. Vergonha".

Abraçados à sua marca esfarrapada, a família buscou alívio neste fim de semana. A filha Ivanka e o genro Jared fugiram para Sun Valley, Idaho, para curtir com a elite global a conferência de mídia e tecnologia de Herb Allen.

Depois de escapar até a Cidade-Luz para o Dia da Bastilha —o pobre e cansado porta-voz Sean Spicer teve de se contentar com uma festa na Embaixada da França em Washington—, Trump e a primeira-dama Melania iriam para seu clube em Bedminster para assistir ao torneio de tênis feminino Aberto dos EUA.

Trump sempre infla seus números, usando sua propria aritmética especial do ego. Mas o filho Don Jr. e Jared têm estado ocupados esvaziando os números deles.

Don Jr. desdenhou do furo de "The New York Times" sobre o encontro que ele teve com Natalia Veselnitskaya, uma advogada russa com contatos no Kremlin, e Rob Goldstone, um publicitário que representa um astro pop russo que incluiu Trump em seu clipe. Mais tarde, porém, soube-se que o filme ia além.

Primeiro se descobriu que eram seis, não quatro, pessoas na reunião, incluindo um lobista que por acaso era um ex-membro da unidade soviética que cuidava da contrainteligência. Depois oito. Logo saberemos que Putin ligou pelo FaceTime, de Moscou.

Don Jr. não se envergonhou por ter alegremente se reunido com russos para coletar sujeira sobre a então presidenciável democrata Hillary Clinton. Ele só ficou chateado, como disse ao âncora Sean Hannity na Fox News, porque o encontro deu "em nada" e se mostrou "apenas 20 minutos jogados fora". A ideia de que era impróprio não entrou em sua mente.

Jared Kushner teve de corrigir sua lista de contatos estrangeiros três vezes, acrescentando mais de cem nomes que de alguma forma lhe haviam escapado. "Seus advogados disseram que isso não foi intencional e que um funcionário dele havia apertado sem querer o botão 'enviar' do formulário antes que estivesse pronto", escreveu Michael Isikoff no Yahoo News.

Ninguém em Washington, uma terra habituada a formulários terrivelmente opressivos, acreditou nisso. Como notou site Vox, "o negócio é que não há um botão 'enviar' nesses formulários de passe de segurança. São 28".

Enquanto teatro, a saga dos Trump é espetacular, com uma coleção estonteante de bobos e bufões. Quem poderia inventar Rob Goldstone, o publicitário britânico rotundo, amante de vodca e chocolate, que gostava de festejar no Russian Tea Room?

O site The Daily Beast lembrou que nos anos 1980, quando Goldstone representava John Denver e Michael Jackson, ele foi à Etiópia para um show de rock para ajudar as vítimas da fome, e conseguiu ganhar 3,5 kg.

Como ele explicou ao jornal "The Sydney Morning Herald", "quero dizer, o que mais há para se fazer em um país como a Etiópia, além de comer?" Em 2010, Goldstone escreveu um ensaio sobre "Os truques e problemas de viajar quando se está gordo".

E quem poderia inventar o advogado de Trump, Mark Kasowitz? Segundo o site jornalístico ProPublica, depois que um homem que assistia a âncora da rede MSNBC Rachel Maddow mandou um e-mail a Kasowitz dizendo-lhe "Renuncie agora", o advogado revidou com um monte de mensagens ofensivas, como "Cuide da sua bunda, cadela" e "Já sei onde você mora, estou na sua cola.... Você me verá, prometo".

Kasowitz, segundo a ProPublica, tem um problema com bebida que pode impedi-lo de conseguir um passe de segurança. Ele fica cada vez mais frustrado com a indisciplina de Trump, enquanto o presidente se retrai enfurecido em sua tenda sobre o labirinto da Rússia, segundo "The Washington Post".

Então esse advogado é o que tenta inculcar disciplina naquele presidente?

Em entrevista à imprensa no avião presidencial Air Force One a caminho de Paris, Trump mais uma vez tentou desviar a culpa da Rússia na ação dos hackers. "Não estou dizendo que não foi a Rússia. O que estou dizendo é que temos de nos proteger, seja quem for. A China é muito boa nisso. Detesto dizer, mas a Coreia do Norte é muito boa nisso. Vejam o que eles fizeram com os estúdios Sony."

Ele se gabou de sua esperteza quando mencionou a Putin as invasões de hackers. Depois de citar o fato uma vez, Trump disse: "Então eu falei de novo para ele, de um modo totalmente diferente".

Uau! Isso deve realmente ter perturbado o mortífero ex-agente da KGB. Você não sabe nada, Donald Trump.

Trump defendeu seu primogênito —que tem a mesma idade de Emmanuel Macron, o presidente francês— como "um bom menino". Don Jr. certamente aprendeu os valores da família Trump.

Nas palavras do vilão Ramsay Bolton em "Game of Thrones", "se você acha que isto terá um final feliz, não estava prestando atenção".


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