Folha de S. Paulo


Opinião

Médicos não podem decidir se vida de Charlie Gard vale a pena

Arquivo pessoal/Associated Press
This is an undated hand out photo of Charlie Gard provided by his family, at Great Ormond Street Hospital, in London. The parents of a terminally-ill baby boy lost the final stage of their legal battle on Tuesday, June27, 2017 to take him out of a British hospital to receive treatment in the U.S., after a European court agreed with previous rulings that the baby should be taken off life support. (Family of Charlie Gard via AP) ORG XMIT: LON821
O bebê Charlie Gard, que possui uma doença terminal, no Hospital Infantil Ormond Street, em Londres

Hoje muita gente está a par do caso de Charlie Gard, um menino britânico de 11 meses que sofre de uma rara doença que causa convulsões e danos cerebrais, deixando-o incapaz de mover os braços e as pernas, comer ou mesmo respirar por conta própria.

Apesar de a doença de Charlie não ter sido muito estudada, devido a sua raridade, a maioria dos médicos prevê que ela causará sua morte. E os médicos que estão cuidando do bebê decidiram que não é do interesse dele ser tratado por mais tempo e querem que ele seja desligado do respirador mecânico.

Chris Gard e Connie Yates, os pais de Charlie, discordam. Eles levantaram mais de US$ 1,5 milhão (cerca de R$ 4,8 milhões) para transportá-lo até os EUA para passar por um tratamento experimental, medida que foi aprovada pelo presidente Donald Trump.

Suas convulsões podem ser geralmente controladas por medicação, e qualquer dor ou desconforto que ele possa sentir da respiração artificial ou da própria doença pode ser controlada com medicação, inclusive sedação profunda.

Mas tribunais britânicos e da União Europeia decidiram contra os pais, recusando seu pedido para levar Charlie aos EUA para um tratamento particular, feito com dinheiro particular. Eles concluíram que como o tratamento não traria benefício ao menino sua continuação seria uma espécie de abuso.

Compreensivelmente, isso levou pessoas bem intencionadas a dar opiniões fortes sobre os diversos lados desse caso complexo. Isso porque as perguntas morais que ele levanta tocam alguns dos valores mais fundamentais de uma cultura.

Uma pergunta que surgiu com destaque em primeiro plano é: quem está qualificado —na verdade tem o direito de– tomar decisões por uma pessoa como Charlie, que não pode se comunicar? E o que dá a esses tomadores de decisão substitutos a autoridade para decidir se a vida de Charlie vale a pena?

Segundo o Reino Unido e a UE, são os médicos de Charlie que devem tomar essas decisões. E essa resposta tem uma espécie de apelo intuitivo. Afinal, a equipe médica está com Charlie diuturnamente.

Os membros da equipe compreendem plenamente os fatos médicos do caso e têm grande autoridade e credibilidade social na cultura ocidental: na verdade, pesquisas mostram que os americanos confiam que os membros das ciências médicas agem no interesse público mais que líderes religiosos, autoridades eleitas ou líderes empresariais.

Mas é importante notar que mesmo quando uma doença ou condição é bem estudada os médicos com frequência cometem erros profundos. Na verdade, a terceira principal causa de mortes nos EUA são os erros médicos.

Um americano chamado Art Estopinan, que tem um filho de 4 anos com uma doença semelhante à de Charlie, tem estado na mídia narrando o fato de que os médicos originalmente lhe disseram para levar seu filho para casa porque ele só viveria dois meses.

Os médicos de Charlie afirmam que têm muito mais certeza sobre seu caso, mas a tese de Estopinan, de que simplesmente não sabemos muito sobre essa doença incrivelmente rara, é importante.

Vamos supor pelo bem do debate que sabemos que os médicos no caso de Charlie acertaram tudo em seu diagnóstico e prognóstico. Que informação moral –isto é, sobre a coisa certa a se fazer no caso de Charlie– se deduz de suas conclusões?

Nenhuma.

Nada moral decorre de meros fatos médicos. Julgamentos do tipo acima ainda não foram feitos. Os médicos, mesmo com perfeito conhecimento da ciência, são os melhores para fazê-los?

Os médicos raramente têm um treinamento sério em ética. Mesmo que o tenham, porém, por que o ponto de vista moral de um único médico –ou mesmo de um grupo de médicos– deve ser mais valorizado que todos nesse caso?

A posição social dos médicos como pessoas privilegiadas deveria nos tornar céticos sobre suas opiniões morais, especialmente se tivermos uma preferência moral de valorizar as necessidades dos mais vulneráveis.

Estudos revelaram, por exemplo, que os médicos muitas vezes classificam a qualidade de vida de seus pacientes deficientes pior que os próprios pacientes.

Descobriu-se que esse também era o caso de adolescentes doentes ou deficientes e suas famílias, que classificam sua qualidade de vida melhor do que os profissionais de saúde, e em pessoas que vivem com esclerose lateral amiotrófica.

E quando os médicos tentam classificar a qualidade de vida de seus pacientes médicos diferentes muitas vezes têm respostas muito diferentes, o que significa que não há muito de científico ou coerente em suas avaliações –embora suas opiniões e experiências pessoais tenham influência.

Em outras palavras, quando examinamos os problemas que pessoas muito vulneráveis, como Charlie Gard, enfrentam, devemos ter em mente que as avaliações morais dos médicos vêm de pessoas que não necessariamente compreendem a experiência dos deficientes e tendem a subestimar a qualidade de vida das pessoas deficientes.

O que fazer? A maioria das pessoas provavelmente concordaria que os pais deveriam ter, em geral, uma latitude extremamente ampla quando se trata de criar significado moral para si mesmos e suas famílias.

É a sua visão do bem que é usada para determinar como eles irão formar e criar seus filhos. Os valores usados para moldar as pessoas que essas crianças se tornarão certamente são os valores dos pais.

Essa mesma latitude deveria ser dada quando se trata de casos complexos como o de Charlie. Os valores dos pais deveriam ser usados para se tomar a decisão, especialmente quando eles não exigem o uso de recursos da comunidade.

Não há base para se adotar arbitrariamente o julgamento moral de um médico –e muitas razões em contrário.

CHARLES C. CAMOSY é professor associado da Universidade Fordham. É autor do livro "Beyond the Abortion Wars: A Way Forward for A New Generation".

Traduzido por LUIZ ROBERTO MENDES CONÇALVES


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