Folha de S. Paulo


Análise

Feministas se adaptam à era de Donald Trump

Quando Hillary Clinton perdeu a eleição presidencial americana para um homem que falava orgulhosamente em agarrar mulheres pela vulva e dizia que as mulheres devem ser punidas por fazer abortos, foi mais que um simples soco no estômago.

Para milhões de mulheres nos Estados Unidos e muito além, isso pareceu assinalar o fim repentino do sonho de um mundo em que também as mulheres têm a oportunidade de comandar; um mundo em que a estrutura dos locais de trabalho e dos sistemas político e judicial, criados por homens para homens, poderiam ser modificados para permitir mais igualdade.

Tudo isso havia evaporado. Era o início da reação contra as mulheres.

A narrativa era que os liberais, as feministas e as minorias tinham provocado sua própria derrota; que a culpa disso era da obsessão com a chamada "política de gênero", e que a atenção principal devia ser voltada a ajudar a classe trabalhadora branca deixada para trás.

Enquanto isso, Donald Trump, cercado de outros homens brancos, começou a cortar os direitos reprodutivos e os direitos das minorias e de setores vulneráveis.

No Reino Unido, cortes profundos aos benefícios públicos e aos serviços locais afetam mulheres, crianças e idosos de maneira desproporcional. O brexit se aproxima, e, com ele, a ameaça à igualdade e aos direitos trabalhistas garantidos pela União Europeia.

Para muitas feministas, a resposta instintiva à realidade tenebrosa é se esconder e, com toda certeza, sair das mídias sociais.

Mas a reviravolta também gerou um novo dinamismo, algo que se reflete não apenas em reações ativistas, como a Marcha das Mulheres, em janeiro, mas também em uma onda de livros que tratam de como as mulheres podem lidar com este mundo desfavorável.

Entre esses livros há duas coletâneas de ensaístas –um gênero que está renascendo. Uma é da respeitada escritora americana Rebecca Solnit, que inspirou o termo hoje imprescindível "mansplaining" (neologismo formado por "man" mais "explain", usado quando um homem explica algo a uma mulher em tom paternalista, como se ela fosse incapaz de entender o assunto sozinha).

O outro é de uma ativista britânica mais jovem, Laurie Penny. Ela é polemista, e seu livro é apresentado como fluxo de consciência, quase sem conter informações, mas Penny escreve com verve e humor. O livro é divertido e explosivo, em todos os sentidos.

Penny identifica uma verdade desde o começo em "Bitch Doctrine", o título impactante de seu livro (ela inicia a obra no mesmo tom em que pretende continuar): "Entendo que muitas pessoas estão indignadas porque mulheres, migrantes e pessoas de cor parecem não entender mais qual é seu lugar devido. Entendo que muitos seres humanos de outro modo decentes acreditam que mais direitos para pessoas negras, morenas e do sexo feminino significam menos direitos para as 'pessoas comuns', termo que usam para indicar as pessoas brancas. Mas o simples fato de você estar indignado não quer dizer que esteja certo."

Penny articula o problema enfrentado por todos que procuram mudar a situação. Isso remete aos primórdios dos movimentos abolicionista, sufragista, dos direitos civis e da libertação dos gays.

Os oprimidos se recusam a ficar em seu "lugar devido". Querem que aqueles que têm o privilégio do poder compartilhem o espaço com aqueles cujas vozes geralmente não são ouvidas. E, no mundo ocidental do século 21, compartilhar espaço significa espaço de governo, espaço de mesa de trabalho nos empregos de alto escalão, espaço nas colunas de nossos jornais.

Mas mais empregos e mais influência para algumas pessoas significa menos para outras. A inclusão carrega um custo. E ninguém gosta de perder alguma coisa, especialmente não quem está acostumado a ganhar.

O problema, para os indivíduos, é que confrontar a resistência às transformações é exaustivo e leva a pessoa ao isolamento, mesmo no nível mais básico, enquanto muitas pessoas corajosas que se manifestam em público são sujeitas a críticas e ameaças virulentas, incluindo ameaças de estupro e morte.

Penny descreve as táticas empregadas pelos exércitos de trolls que lançam invectivas contra liberais como "palavras de guerra".

Penny é usuária famosa do Twitter e escreve com eloquência sobre o discurso de ódio do qual é alvo há anos: "Quando aquelas de nós que éramos visadas nos manifestávamos, nos diziam que as ameaças não eram reais... que deveríamos rir e sair da internet. Ser mais quietas. Ficar mais comportadas."

As agressões morais às mulheres via as mídias sociais são algo que as empresas de tecnologia e a sociedade mais ampla ainda não encararam de frente.

Penny é uma figura pública, e "Bitch Doctrine" reflete essa experiência.

Já "The H-Spot: The Feminist Pursuit of Happiness", da jornalista do "New York Times" Jill Filipovic, é um manual prático e cuidadosamente pesquisado da vida moderna, voltado às mulheres comuns.

Em capítulos sobre a maternidade, amizade, sexo, trabalho e relacionamentos, a autora se inspira em sua própria experiência e a de outras para tratar dos problemas estruturais enfrentados pelas mulheres na sociedade patriarcal –e explicar como as mulheres podem ser mais felizes. "Para isso é preciso combater as forças políticas regressivas com nossa própria visão moral de uma sociedade ótima –uma sociedade estruturada em torno das mulheres e que nos traga satisfação."

A tese de Filipovic é que, se as mulheres avançarem e tiverem vida familiar satisfatória, um trabalho que paga o suficiente para viver e puderem viver livros do medo da intimidação e da violência doméstica, isso aumentará os dividendos de vida e a prosperidade de todos.

Em momentos de pessimismo, as feministas e suas aliadas podem animar-se pensando em quanto já avançamos em um espaço de tempo muito curto, graças às ativistas que nos antecederam.

Em seu capítulo sobre o casamento, por exemplo, Filopovic admite que o tipo de casamento que ela e suas pares (mulheres de 30 e poucos anos e com alto nível de instrução) topariam fazer estão a "mundos de distância" dos casamentos de mesmo uma geração atrás. "Uma das mudanças mais profundas foi no status das mulheres casadas, que de um bem pessoal de um homem se converteram em indivíduos autônomos. Mas assistimos a transformações sociais e culturais também. Na década de 1950, a inteligência nem sequer figurava entre as dez qualidades que os homens americanos diziam mais desejar em uma esposa (ocupava o 11º lugar da lista, empatado com a educação). Mais importantes que a inteligência era saber cozinhar, ser boa dona de casa e ter boa índole."

Em 1996 (logo antes de eu mesma me casar), a inteligência já estava na quinta posição da lista das qualidades desejadas. Hoje é a qualidade número um que os homens procuram. O fato de tal pesquisa existir é um pouco deprimente, mas nós mulheres somos realistas. Festejamos nossos avanços onde quer que os encontremos.

Um dos segredos para se sair bem em um mundo que ficou opressivo de repente podem ser as amizades.

Como diz Filipovic, "os relacionamentos platônicos entre mulheres sempre foram forças que promovem a criatividade, aventuras, amor e às vezes ciúmes".

Mas boa parte do prazer possibilitado por essas amizades é relativamente recente, dado que durante séculos as mulheres tiveram que passar da infância para o casamento e a maternidade precoces.

Hoje as coisas são diferentes, e talvez seja nessas amizades e em experiências coletivas como a Marcha das Mulheres que as mulheres possam utilizar as mídias sociais, tão frequente venenosas para elas, como uma "internet para o bem", para relacionar-se, organizar, encontrar outras pessoas, resistir.

Esse tipo de agitação das massas mainstream tem uma espécie de clima retro, algo que cheira a uma volta à década de 1970 e os grupos de conscientização que se reuniam nas casas de suas participantes e que puseram o movimento de libertação das mulheres no topo da agenda.

A internet também possibilita novas maneiras de explorar amizades femininas, algo que Filipovc cita por meio do podcast de sucesso "Call Your Girlfriend".

As apresentadoras vivem cada uma de um lado dos Estados Unidos, de modo que se telefonam e batem papo. E, ao fazê-lo, cunharam a hoje famosa Shine Theory, ou teoria do brilhar, que reza que "cercar-se de mulheres inteligentes e bem-sucedidas que você admira faz com que todas avancem e desmente a ideia de que só existe um número limitado de lugares à mesa para mulheres".

Ao ampliar e compartilhar interesses, preocupações e vitórias, todas se beneficiam. Os podcasts permitem intimidade, mas em grande escala, e muitas vezes através de eventos ao vivo.

Numa gravação recente à qual assisti do podcast "The Guilty Feminist", o tema era "mulheres intrépidas", e algumas mulheres na plateia vieram vestidas de sufragistas, de integrantes da banda Pussy Riot ou de Cleópatra. No final cantamos "I Will Survive", todas juntas e em pé.

É muito importante celebrar os encontros otimistas possibilitados no cotidiano –nos locais de trabalho, em eventos sociais, nos chamados "espaços seguros" (sim, isso mesmo) onde mulheres falam e ouvem.

Rebecca Solnit, porém, vai além, lembrando ao leitor como é urgente e importante para o feminismo que se ouçam as vozes que foram silenciadas à força. Ela cita a escrita, poeta e ativista negra Audre Lorde: "O que eu lamentei mais foram meus silêncios. E há tantos silêncios que precisam ser rompidos."

Os ensaios da coletânea mais recente de Solnit, "The Mother of All Questions", abrangem temas diversos, desde o texto titular, que fala da obsessão da sociedade com as mulheres e a maternidade, até a literatura ("Homens Me Explicam 'Lolita'") e uma análise de "Assim Caminha a Humanidade", de 1956, que fará você correr para o sofá para ver o filme.

Mas ela sempre retorna ao silêncio, definido em "Uma Breve História do Silêncio" como "silêncio como o que é imposto e calma como a que é buscada".

Ao longo dos séculos o testemunho das mulheres foi ignorado, desprezado e desacreditado. "Uma parte grande do feminismo tem consistido em mulheres falando de experiências até agora não reconhecidas, e uma parte grande do antifeminismo tem sido homens dizendo às mulheres que essas coisas não acontecem. 'Você não foi estuprada', diz seu estuprador, e se você insiste em afirmar que foi, pode ser ameaçada de morte. As pessoas não brancas são obrigadas a ouvir as mesmas mentiras, alegações de que não existe racismo, que elas não recebem tratamento desigual e que a raça não afeta a nenhum de nós. Afinal, quem melhor do que as pessoas brancas para saber quem está tentando silenciar as pessoas de cor? E a mesma coisa se dá com as pessoas LGBT."

Solnit nos pede para prestarmos atenção ao que dizem outros –"o ato fundamental da empatia, de ouvir, de enxergar, de imaginar experiências que não sejam as nossas".

A leitura deste livro finalmente me deu a chave para entender o que aconteceu nos últimos anos e que permitiu que finalmente viesse à tona a escala enorme da violência sexual –cometida por celebridades como a personalidade de TV britânica Jimmy Savile, por figuras seniores de igrejas cristãs e escolas particulares tradicionais e por gangues de predadores sexuais que durante anos exploraram meninas vulneráveis em cidades inglesas, meninas cujas queixas a polícia ignorou. "Foi o silêncio que permitiu que os predadores cometessem seus desmandos ao longo das décadas, passando impunes. É como se as vozes desses homens públicos destacados tivessem devorado as vozes dos outros e as reduzido a nada."

As coisas mudaram –até certo ponto. As mulheres que acusaram homens poderosos na Fox News de assédio sexual foram vilipendiadas -mas seus depoimentos foram ouvidos e considerados críveis.

"Se o direito de falar, de ter credibilidade, de ser ouvido é uma espécie de riqueza, essa riqueza agora está sendo redistribuída", diz Solnit, numa visão em última análise esperançosa.

Ouvir, falar, ter conversas entre amigas –essas são as coisas pequenas às quais devemos dar valor e que podem ser transformadoras quando as mulheres e suas aliadas amplificam as vozes umas das outras.

Isso é articulado sucintamente em um livro de produção belíssima de célebre romancista nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. "Dear Ijeawele: Or a Feminist Manifesto in Fifteen Suggestions" é uma carta escrita a uma amiga que acaba de ter uma filha, Chizalum.

É pessoal: "Uma espécie de mapa do meu próprio pensamento feminista", escreve Adichie. É político: "Ensine a ela a questionar o uso seletivo que nossa sociedade faz da biologia para justificar normas sociais".

E, como poderiam esperar as fãs da escritora, é escrito com habilidade e sem rodeios. "Temos um mundo cheio de mulheres que não conseguem exalar completamente porque há tanto tempo são condicionadas a dobrar-se em formas diferentes para que sejam dignas de ser gostadas. Então, em vez de ensinar Chizalum a ser alguém gostável, ensine-a a ser honesta. E gentil."

Todos nós nos beneficiaríamos de um pouco mais gentileza no mundo neste momento.


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