Folha de S. Paulo


Mentor da lei da maconha no Uruguai cita maior segurança e qualidade

Secretário-geral da Junta Nacional de Drogas do Uruguai durante a gestão Mujica (2010-2015), Julio Calzada é o mentor da chamada Lei da Maconha. Em entrevista realizada em seu escritório, na prefeitura de Montevidéu, Calzada falou dos primórdios da legislação.

"A ideia não saiu do nada, ouvimos os usuários, ouvimos especialistas, fizemos grupos de pesquisa. E tudo isso porque dentro do programa do Mujica estava a ideia de mudar o enfoque do combate ao narcotráfico."

Michael Gordon/Kush Tourism
Grupo de turistas na estufa e na loja Kush Tourism em Seattle, nos EUA
Grupo de turistas na estufa e na loja Kush Tourism em Seattle, nos EUA

*

Folha - A iniciativa da Lei da Maconha não surgiu exclusivamente da esquerda, é correto?
Julio Calzada - Não, primeiro vieram as marchas e os pedidos dos usuários, que começaram lá atrás, no começo dos anos 2000. Depois, foram colocadas sobre a mesa algumas propostas. Três delas eram de agrupações de esquerda, mas também havia uma de Lacalle Pou, do Partido Nacional (liberal).

Mas a visão dos liberais era distinta, achavam que se deveria liberalizar o cultivo sem restrições, mas não cuidar do usuário e, além disso, penalizar a venda. Enquanto isso, as da esquerda iam na linha de regulamentar e transformar o assunto em tema de saúde pública.

De todo modo, os dois lados, a direita e a esquerda, dentro do parlamento, eram a favor de que pelo menos a questão do auto-cultivo deveria ser liberalizada, para ajudar a enfrentar o narcotráfico que vinha do lado de lá da fronteira.

O que fez a discussão avançar?
Começaram a ocorrer mortes violentas. Sei que se compararmos os índices do Uruguai com os de São Paulo ou de Bogotá, não são nada, mas imagine o impacto que teve quando passamos de ter 5 homicídios por 100 mil habitantes para 7? E quando apareceram as figuras dos sicários, matando e ajustando contas aqui, em Montevidéu? As pessoas ficaram assustadas.

Houve o caso de um pizzaiolo morto por engano no lugar do dono do estabelecimento, que comandava uma boca de venda de drogas. Depois o de uma adolescente. As pessoas ficaram desesperadas, e o assunto da segurança veio para o primeiro lugar entre as preocupações dos uruguaios, embora este seja um dos países mais seguros da América Latina.

A crise de 2001 foi um detonador dessa situação?
Sem dúvida, foi a partir daí que os índices de pobreza e de criminalidade foram aumentando, e também se abriu espaço para o narcotráfico vindo de países vizinhos.

Antes, o uruguaio quase não conhecia a droga. Os mais humildes, sim, usavam cola de sapateiro, que é a droga dos pobres, porque aquece no inverno.

Mas a partir de 2001 começou a surgir a pasta-base da cocaína, vinda do Peru, e a maconha em maior quantidade, do Paraguai. Foram se formando os cartéis locais e começou essa onda de violência.
Repito, ainda que ínfima para os padrões da América Latina, era algo que alarmava muito a população.

Qual foi a reação de Mujica?
Quando começou sua gestão, o presidente estava por dentro do problema, e achava que medidas deviam ser tomadas, desde combater a corrupção dos funcionários públicos até mudar o modo como encarávamos a guerra contra as drogas. Ele não queria o modelo do México ou da Colômbia. E passou a estimular a discussão por aí, separando o debate sobre as drogas mais duras do debate sobre as mais brandas.

Mas o que faz a Lei da Maconha uruguaia distinta das que existem é o fato de o Estado produzir a droga. Como se deu essa discussão?
Para entender isso, é preciso entender o Uruguai. Não é a primeira vez que isso ocorre. Nós já produzimos nosso próprio álcool para impedir que se vendesse algo sem controle de qualidade à população. O Estado regulando não é um problema num país como este em que, no começo do século 20, avançou-se tanto, a partir do governo, em dar direitos civis das pessoas: a lei do divórcio apenas pelo pedido da mulher, a separação da Igreja e do Estado, a regulamentação da prostituição.

Tudo isso não é estranho no Uruguai porque foi iniciativa do Estado.

Ainda assim, não houve uma correria para o registro dos usuários. Há 3.500 usuários individuais, e mais os 6.700 do auto-cultivo. A Lei não está parecendo atrativa o suficiente?
Não creio, acho que muitos estão esperando para ver como resulta a experiência no começo, para se juntar depois.

Segundo nossos dados, hoje há 160 mil pessoas que consomem pelo menos uma vez por ano, 70 mil que o fazem todo mês e 30 mil no dia a dia. Que destes, cerca de 11 mil esteja registrado e evitando ir a uma boca de fumo. Ou seja, consumindo de uma forma segura, eu já considero uma boa notícia.

O sr. acompanhou o que houve em São Paulo, com a experiência da cracolândia e sua posterior destruição?
Sim, conheço bem o programa porque já estive aí algumas vezes, estive em contato com as pessoas do Braços Abertos. Creio que no começo, houve avanços importantes, depois, uma estagnação.
Mas a pior solução possível que se podia dar ao caso foi a que esse prefeito deu. Criminalizar usuários ou coagi-los a uma internação é um erro.

Ninguém deixa de consumir drogas se não está convencido de que tem um problema, isso está mais do que comprovado cientificamente.

E por que o sr. tem certeza de que o programa uruguaio será exitoso?
Basta olhar para o Uruguai hoje. A maconha é legal há quase quatro anos e não há uma epidemia de gente fumando na rua ou se viciando. Não tem muito mais gente consumindo agora do que havia antes. A mudança foi para melhor. Quem compra um produto mais seguro e desestimula a violência do narcotráfico já está fazendo muito pelo planeta.


Endereço da página:

Links no texto: