Folha de S. Paulo


Para pais de luto, Trump 'fala pelos mortos' na questão da imigração ilegal

As famílias são capazes de citar todas as vezes que telefonaram à mídia e escreveram para Washington, mas, mesmo depois de tanto tentar, nunca antes haviam ouvido ninguém importante dizer qualquer coisa semelhante: a maioria dos imigrantes mexicanos, declarou Donald Trump em seu primeiro discurso de campanha, é formada por "estupradores" que atravessam a fronteira "levando drogas e criminalidade".

Agora Trump viera encontrar as famílias de pessoas mortas por imigrantes ilegais, e elas queriam lhe dizer que ele tinha razão.

O filho de uma família foi atropelado por um caminhão. Outro levou um tiro na esquina de sua casa. As causas de morte eram diferentes, mas o motorista, o atirador, os perpetradores eram os mesmos, disseram os pais: pessoas que nunca deveriam ter estado nos EUA, para começo de conversa.

Sentado sozinho com eles no hotel Beverly Wilshire, em julho de 2015, o então candidato distribuiu abraços, enquanto as famílias choravam. Quando a campanha telefonou a essas pessoas, disse apenas que teriam um encontro com Trump. Mas então o grupo foi levado à sala ao lado, onde a campanha convidara jornalistas para uma coletiva de imprensa.

Foi uma surpresa, mas ninguém pareceu se incomodar. Várias das pessoas se adiantaram para endossar Trump.

"Ele fala pelos mortos", disse Jamiel Shaw, cujo filho adolescente foi morto a tiros por um membro de uma gangue em Los Angeles, em 2008. "Ele fala em nome de meu filho."

Shaw queria que a mídia soubesse que Trump poderia ter ido além quando chamou os imigrantes mexicanos de estupradores e bandidos. "Eu teria dito que eles são assassinos."

Saudados por sua coragem, acusados de racismo, desprezados como sendo meros fantoches, esses são alguns dos porta-vozes mais potentes de Trump, as pessoas cuja angústia pessoal formou o alicerce emocional da cruzada do presidente contra a imigração ilegal e lançou uma nuvem de incerteza sobre o futuro dos 11 milhões de imigrantes não autorizados que vivem nos Estados Unidos.

A aliança entre eles se resumia ao seguinte: para pais sedentos por alguém que os compreendesse, Trump representou um raio de esperança.

A campanha de Trump os levou de avião para discursar em comícios e na Convenção Nacional Republicana, os hospedou em hotéis Trump e permaneceu em contato com eles, com telefonemas e mensagens regulares.

Após sua vitória, Trump convidou pelo menos uma dessas pessoas ao baile de sua posse e colocou três outras sentadas com a primeira-dama em seu primeiro discurso diante do Congresso.

As famílias o defenderam na época e continuam a fazê-lo, nas mídias sociais e para a imprensa, dizendo ao mundo que, com Trump na Presidência, seus filhos não terão morrido em vão.

Nesta semana a Câmara dos Deputados pretende votar um projeto de lei que vai elevar as penalidades para imigrantes que ingressam no país novamente depois de terem sido deportados. A lei recebeu o nome de uma mulher que morreu baleada por um homem que atravessou a fronteira ilegalmente pelo menos cinco vezes.

Sabine Durden, mãe de outra vítima, conta que caiu de joelhos e chorou quando primeiro ouviu Trump falar dos perigos da imigração ilegal. E então a campanha de Trump a procurou.

"Depois de ter sofrido uma dor tão profunda e de ninguém me ouvir, ninguém querer falar comigo sobre isso, foi uma experiência quase transcendental", ela contou. "Foi como se eu tivesse vestido uma capa de Super Mulher. Eu sabia que estava travando uma luta digna."

Em Washington, em abril, pessoas que perderam filhos ocupavam as primeiras fileiras da plateia quando o secretário de Segurança Doméstica de Trump anunciou a criação de um escritório responsável por vítimas de crimes cometidos por imigrantes não autorizados. Das muitas promessas que o novo presidente fez no nome delas, foi uma das primeiras a ser cumprida.

Para os críticos de Trump, o escritório e as pessoas que supostamente representa não passam de peões usados pelo presidente em seus esforços toscos para retratar como monstros os integrantes de um setor da população que, em sua maior parte, respeitam as leis, e que pesquisas comprovam que cometem menos crimes que os americanos nascidos no país.

Mas ali, diante das câmeras, o secretário John F. Kelly estava colocando a mão sobre o coração e agradecendo as famílias.

"Meu coração sente a dor de vocês", disse Kelly. Naquela noite, em um jantar com drinques no Trump International Hotel, na avenida Pennsylvania, as famílias festejaram o que lhes pareceu ser uma conquista.

Era estranho que um dos melhores momentos de sua vida envolvia reviver o momento mais doloroso. Mas tinha havido muita coisa semelhante nos últimos dois anos, enquanto elas se esforçaram para encontrar um sentido em tudo: a surpresa e o orgulho doloroso por aparecerem na televisão nacional e ser recebidas com honras na Casa Branca para falar do flagelo da imigração ilegal, tudo isso devido aos seus filhos que haviam sido mortos.

TOMADA DE CONSCIÊNCIA REPENTINA

Os jornais locais disseram que a motocicleta de Dominic Durden foi atingida por uma picape quando ele passava pela rua Pigeon Pass, em Moreno Valley, Califórnia, a caminho do trabalho como atendente de telefone do serviço 911.

Durden tinha 30 anos. O motorista da picape foi identificado como Juan Zacarias Tzun, que foi acusado de homicídio veicular culposo.

Era 12 de julho de 2012. Sabine Durden havia visto seu filho pela última vez no dia anterior, quando ele a levara ao aeroporto onde ela embarcaria para Atlanta. Mais tarde, quando seu telefone começou a receber mensagens de amigos dele, Sabine achou que sabia a razão.

Foi apenas mais tarde que ela descobriu, através de amigos de seu filho que trabalhavam para a polícia, que Tzun viera aos EUA ilegalmente da Guatemala e fora condenado duas vezes por dirigir embriagado. Ele tinha sido libertado sob fiança algumas semanas antes da colisão.

Quando foi sentenciado, em 2013, Tzun atribuiu o acidente a Deus. Sabine Durden atribuiu a culpa ao sistema de imigração.

"Se tivesse sido um acidente, eu teria conseguido superar. Mas não foi acidente, porque, se aquele sujeito não tivesse estado no país às 5h45 do dia 12 de julho de 2012, meu filho ainda estaria vivo", ela disse. Tzun foi deportado em 2014.

Mas ninguém mais parecia encarar a morte de Dominic sob a mesma ótica. Sabine comentou: "Eu me sentia sendo passada de uma autoridade para outra, sem que nada fosse feito".

Nascida na Alemanha, Sabine Durden tem 59 anos e se mudou para os Estados Unidos depois de se casar com um militar americano. Ela acabou ganhando a cidadania americana. Seu marido era democrata, então ela também se tornou democrata. Ela nunca pensara muito sobre imigração, até Dominic morrer. Desde então, essa questão passou a dominar sua vida.

Então chegou Trump. Sempre que ela o via, ela contou, Trump lhe dava um abraço apertado e a chamava de "a mamãe de Dom".

"Ele dizia: 'Você nunca mais ficará sozinha. Nunca mais vai ter que travar essa luta sozinha'", contou Sabine, que discursou em três comícios de Trump.

A candidata presidencial democrata, Hillary Clinton, falava da necessidade de criar um caminho para os imigrantes ilegais alcançarem a cidadania. No dia em que Sabine soube disso, mudou seu registro de eleitora de democrata para republicana.

A imigração era "uma das questões que não me afetava. Eu estava ocupado trabalhando", comentou Steve Ronnebeck, 50, cujo filho de 21 anos, Grant, morreu baleado quando trabalhava à noite em uma loja de conveniência em Mesa, Arizona, em janeiro de 2015.

"Com o passar do tempo, meu sentimento de revolta foi crescendo e eu fui ficando mais ativo", ele comentou. "É assim que enfrento minha dor."

TRATAMENTO VIP

Era o paradoxo de Donald Trump, o bilionário sem filtros que parecia estar tão distante como a Quinta Avenida, mas ao mesmo tempo tão próximo quanto o televisor da sala.

Ao mesmo tempo em que uma multidão de críticos avisava que ele estava bajulando seus fãs para traí-los futuramente, para muitas das famílias a aliança que Trump selara com eles passava a sensação de ser inabalável.

O segredo era que Trump prestava atenção. Sem parar.

Depois do encontro em Beverly Hills, segundo relato do "Wall Street Journal", Jamiel Shaw recebeu uma cesta de presentes contendo chocolates, o livro de Donald Trump "The Art of the Deal", gravatas e abotoaduras com a marca Trump.

Em dado momento, ele viajou no avião particular de Trump. Em outro momento, fez um comercial para a campanha do então candidato, hospedando-se para isso no Trump International Hotel em Las Vegas.

As outras famílias também ganhavam atenção regular da campanha de Trump. Um assessor do candidato, Stephen Miller, lhes telefonava ou mandava mensagens de texto pelo menos uma vez por mês, convidando-as a participar de comícios ou simplesmente ligando para saber como estavam. Alguns familiares conversavam regularmente com Corey Lewandowski, então diretor da campanha de Trump, ou com Hope Hicks, a porta-voz da campanha.

Stephen Miller, que defendia restrições à imigração e hoje é assessor sênior da Casa Branca, ajudou a redigir a ordem executiva de 25 de janeiro de Trump, instruindo o governo a endurecer a vigilância da imigração.

Alguns dos pais que haviam perdido filhos trocavam mensagens de texto regularmente com Keith Schiller, guarda-costas de Trump de longa data e atual assessor do presidente no Salão Oval. Foi Schiller quem Trump enviou para entregar uma carta em mãos a James Comey informando-o que ele não era mais diretor do FBI.

Na Convenção Nacional Republicana, Jamiel Shaw, Sabine Durden e outro pai se revezavam para falar de seus filhos. O discurso que Trump fez quando aceitou a candidatura presidencial pelo Partido Republicano foi dedicado em parte à história de Sarah Root, 21 anos, que morreu no Nebraska um dia depois de se formar na faculdade quando seu carro foi abalroado por um imigrante hondurenho que dirigia embriagado.

"Encontrei a bela família de Sarah", disse o candidato. "Mas, para este governo, a filha incrível deles foi apenas mais uma vida americana que não foi digna de ser protegida."

Trump mencionou também o caso que, pelo menos para a direita política, se tornara emblemático dos perigos da imigração ilegal: o de Kathryn Steinle, 32 anos, morta a tiros em 2015 em um píer de San Francisco. O suspeito foi um-detento mexicano que já tinha sido deportado cinco vezes. Alguns meses antes da morte de Steinle as autoridades locais o haviam solto da prisão, sem notificar agentes federais de imigração.

"Minha adversária quer cidades-santuário", disse Trump, aludindo a governos municipais, incluindo o de San Francisco, que limitam sua cooperação com as autoridades de imigração. "Mas Kate Steinle não encontrou santuário."

Desde então, o presidente prometeu negar verbas federais a essas cidades, mas um juiz bloqueou temporariamente a possibilidade de sua administração fazê-lo. A Câmara deve votar esta semana um projeto de lei, conhecido com a Lei de Kate, que vai endurecer as penalidades para imigrantes flagrados entrando no país ilegalmente depois de já terem sido deportados.

Mas, apesar de toda a repercussão do caso de Steinle, sua família manteve distância da campanha de Trump, rompendo seu silêncio de vez em quando apenas para expressar incômodo com o modo como a morte dela estava sendo usada como granada política. Através de seu advogado, a família se negou a dar declarações.

"Para Donald Trump, seríamos exatamente o que ele precisava -uma garota linda, San Francisco, imigrante ilegal, preso um milhão de vezes, um crime violento e etc., etc. etc.", disse Liz Sullivan, a mãe de Steinle, ao "San Francisco Chronicle" em 2015.

Tradução de CLARA ALLAIN


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