Folha de S. Paulo


O lado sombrio da renovação nacional da China

Exemplos do Ocidente cedendo a liderança global parecem ter-se tornado uma ocorrência semanal. No vácuo deixado, é natural procurar um substituto e, para muitos, incluindo os mandarins em Pequim, a China parece ser o mais plausível.

Mas o que sabemos sobre o tipo de líder global que a China quer ser? O melhor lugar para começar são as intenções declaradas pelos seus dirigentes. Ao assumir o posto de líder máximo do Partido Comunista, que governa o país, em 2012, o presidente Xi Jinping declarou como sua missão concretizar o "sonho chinês", que ele definiu como "o grande rejuvenescimento da nação chinesa", segundo traduções oficiais.

Li Tao/Xinhua
O presidente chinês, Xi Jinping, durante evento do Partido Comunista em novembro de 2016
O presidente chinês, Xi Jinping, durante evento do Partido Comunista em novembro de 2016

Essa frase foi repetida "ad nauseam" desde então e passou a sustentar e justificar tudo o que a China faz. A construção de uma nova rota da seda para a Europa, a rápida expansão do Exército de Libertação do Povo e a militarização de ilhas artificiais em águas disputadas no mar do Sul da China –tudo faz parte da gloriosa tarefa de rejuvenescimento.

Para os ouvidos ocidentais, "rejuvenescimento" tem conotações positivas, e todas as nações têm o direito de se renovar por meio de esforços pacíficos.

Mas a tradução oficial desse slogan crucial é profundamente enganosa. Em chinês é "Zhonghua minzu weida fuxing", e a parte importante da frase é "Zhonghua minzu" –"a nação chinesa", segundo a propaganda do partido. Uma tradução mais precisa, embora não perfeita, seria "a raça chinesa".

É certamente assim que ela é interpretada na China. O conceito inclui tecnicamente todas as 56 etnias oficiais, entre elas tibetanos, uigures muçulmanos e coreanos étnicos, mas é quase universalmente entendido como o grupo étnico han, que forma mais de 90% da população.

O mais interessante sobre "Zhonghua minzu" é que a expressão incorpora muito deliberada e especificamente qualquer pessoa que tenha sangue chinês no mundo, não importa há quanto tempo seus ancestrais tenham deixado o território chinês.

"A raça chinesa é uma grande família, e sentimentos de amor pela terra-mãe, a paixão pela pátria, estão infundidos no sangue de toda pessoa de ancestralidade chinesa", afirmou o primeiro-ministro Li Keqiang em um discurso recente.

Esse conceito se reflete em Hong Kong, onde qualquer recém-chegado que consiga convencer as autoridades de que é pelo menos em parte "chinês" pode obter a cidadania. Enquanto isso, pessoas de origem indiana ou britânica cujas famílias vivem no território há mais de um século nunca terão plenos direitos de cidadãos.

Alguns teóricos em Pequim afirmam até que a ideia moderna de Estado- nação soberano é uma invenção ocidental ilegítima, que contradiz a ideia chinesa tradicional de "todos sob o céu", com o imperador chinês no centro e o poder irradiando da Cidade Proibida para todos os recantos da Terra.

Ideias de rejuvenescimento nacional com base racial e destino manifesto têm ecos profundos e incômodos na história do século 20 e da expansão colonial europeia anterior. É por isso que os tradutores do Partido Comunista optaram pela enganosa tradução oficial de "nação", em vez de "raça".

Para muitos na diáspora chinesa, esse truque linguístico não diminui o desconforto, pois eles são cada vez mais chamados a contribuir para o "grande rejuvenescimento", independentemente de sua nacionalidade ou suas atitudes em relação ao Partido Comunista governante. Li disse que é dever de todas as pessoas de origem chinesa ajudar a alcançar o investimento, o desenvolvimento tecnológico e as metas comerciais da República Popular da China.

Ele disse que elas também devem promover a cultura tradicional chinesa (como definida pelo Partido Comunista) por todo o mundo e a se opor de forma inabalável à independência de Taiwan.

Em troca da obediência, o partido oferece a perspectiva de pertencer à "grande família" da raça chinesa, assim como uma possibilidade de participar do duradouro sucesso econômico do país. Mas os que recusam seu dever filial para com o Partido Comunista se arriscam a ser rotulados de "traidores da raça", vilipendiados nas comunidades de expatriados e proibidos de visitar a China continental.

Para os países nas vizinhanças da China, a retórica do rejuvenescimento tem implicações mais sérias. Sob dinastias e imperadores passados, grandes áreas de seu território atual foram conquistadas e controladas pela China.

A lógica do grande rejuvenescimento chinês é essencialmente revanchista e assume que o país ainda está a um longo percurso de recuperar seu merecido nível de poder, influência e até de território.

A pergunta perigosa para o resto do mundo é em que ponto a China sentirá que atingiu o auge de seu rejuvenescimento e qual será a consequência para todos os que não se incluem na grande família da raça chinesa.

Tradução Luiz Roberto Mendes Gonçalves


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