Folha de S. Paulo


Ataque a muçulmanos em Londres cria debate sobre parcialidade da mídia

Desde março, houve três incidentes em que um homem dirigindo uma van atropelou pedestres em Londres. Em todos eles morreram civis. E em cada um deles as autoridades rapidamente anunciaram que o consideravam um ato terrorista.

Mas há uma sensação entre alguns britânicos de que o último desses ataques –uma van atirada contra um grupo de muçulmanos na área etnicamente diversificada de Finsbury Park, no início da noite de segunda-feira (19)– não foi tratado da mesma maneira pelos canais de notícias do país.

No "Times" de Londres –um jornal venerável, às vezes chamado de registro do Reino Unido–, só os primeiros dois ataques mereceram ocupar toda a primeira página. O de Finsbury Park teve uma manchete bem menor, com o suspeito, um britânico branco, citado como um "'lobo solitário' desempregado", "pai de quatro filhos".

Outro jornal britânico criticado online foi o "Daily Mail", popular tabloide britânico de mercado médio. Em seu site na web, os títulos haviam ligado o bairro de Finsbury Park ao extremismo islâmico e descrito o suposto atacante como "bem barbeado".

Pouco depois do ataque na segunda-feira em Finsbury Park, jovens muçulmanos reagiram contra o que consideram um duplo critério que afeta não só a cobertura na mídia, mas também o modo como o país em geral lida com o extremismo.

"Isso está apenas mostrando a hipocrisia", disse aos repórteres um rapaz que deu o nome de Ibn Oman. "O modo como eles tratam o extremismo islâmico e o modo como tratam o extremismo de direita."

Os jornais britânicos há muito tempo são conhecidos pelo estilo agressivo e inflexível, com os tabloides em particular provocando diversas polêmicas. Mas em um tempo de aparente tumulto constante no Reino Unido os canais de notícias estão enfrentando um novo escrutínio –assim como perguntas sobre se sua antes poderosa influência política ainda é realmente tão poderosa.

Tanto o "Daily Mail" como o "Sun", os dois jornais britânicos de maior circulação, apoiaram com ênfase a primeira-ministra de direita Theresa May e se opuseram ferozmente a seu adversário de esquerda, o líder do Partido Trabalhista, Jeremy Corbyn.

Mas Corbyn afinal conseguiu uma reviravolta eleitoral surpreendente, que fez May perder a maioria parlamentar e a estabilidade política. Alguns argumentaram que o acontecimento mostrou que os tabloides britânicos perderam sua notória influência política, usurpada pelas redes sociais e os blogs de esquerda, que muitas vezes assumem uma posição contra a mídia da corrente dominante.

Atropelamento em Londres

O frenesi midiático em torno do incêndio na Grenfell Tower em Kensington norte, na semana passada, só piorou as coisas, e o "Daily Mail" e o "Sun" foram criticados por seu estilo de reportagem em meio a amplas críticas à cobertura do desastre pelos canais de mídia.

Sobre o ataque em Finsbury Park, há alguns motivos compreensíveis pelos quais a cobertura pode ter sido conduzida de modo diferente. O suspeito não reivindicou aliança a nenhuma organização ligada ao terrorismo, e estas tampouco reivindicaram seus atos, e o número de mortos é menor que o do ataque com veículo em março em Westminster e do ataque semelhante em junho na ponte de Londres e no Borough Market, para não falar no atentado a bomba em Manchester que ocorreu nesse ínterim.

Mais importante, os canais de mídia britânicos estão legalmente restritos pelo fato de que o suspeito foi apanhado vivo, o que significa que o caso provavelmente irá a julgamento. Steve Parks, um ex-jornalista, escreveu um comentário muito lido no Twitter explicando que isso significa que muitos canais de mídia agora terão de baixar o tom em sua cobertura por medo de influir no caso.

"Quando o suspeito está vivo, há fortes restrições à reportagem para não impactar o julgamento", escreveu Parks. "Quando o suspeito está morto, pode-se dizer qualquer coisa."

Mesmo com tais considerações, porém, a questão da cobertura pela mídia de diferentes atos de terrorismo é problemática no Reino Unido. Durante anos, os jornais britânicos foram acusados de escrever de forma injusta sobre as comunidades islâmicas do país, retratando-as só por suas supostas ligações com tramas terroristas e pouco mais.

Pesquisas realizadas na Universidade de Cambridge sugerem que esse tipo de retrato feito pela mídia da corrente dominante contribui para um "clima de crescente hostilidade" contra os muçulmanos no Reino Unido. Outro estudo do ano passado revelou que só 0,4% dos jornalistas se classificam como muçulmanos, em comparação com cerca de 5% da população total.

O que algumas pessoas temem é que a constante radicalização na comunidade islâmica possa resultar em radicalização contra os muçulmanos. Em Finsbury Park, moradores temiam que o modo como sua comunidade foi estereotipada agora a transforme em um alvo.

"A questão que não está sendo abordada é que o extremismo sob qualquer forma é exatamente igual", disse Ibn Oman a repórteres.

Traduzido por LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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