Folha de S. Paulo


Moradores de bairro multiétnico de Londres alvo de ataque pregam união

"O cara que morreu ontem [domingo] era meu vizinho. Gente está morrendo enquanto vocês conversam", gritava um rapaz negro tentando avançar em direção à porta de uma mesquita no norte de Londres, onde uma van atropelou muçulmanos na hora em que deixavam o culto na noite de domingo (18). "Eu parti para cima do motorista. Vocês não fazem nada."

Um policial conteve o homem, que não quis se identificar. Minutos antes, a primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, deixara o lugar sob vaias e gritos como "May tem que sair" e "você tem sangue nas mãos".

O sangue, aliás, ferve numa Londres que tenta voltar ao normal após um incêndio matar 79 pessoas em um prédio popular numa área nobre e dois atentados terroristas deixarem 13 mortos em três meses, além das 22 vítimas de um homem-bomba em Manchester. O ataque de domingo, o primeiro do tipo a configurar crime de ódio contra muçulmanos, não ajuda.

Embora autoridades tenham passado a chamar de terrorismo o ataque que deixou um morto e uma dezena de feridos em Finsbury Park, a demora em classificá-lo assim enfureceu os moradores de todas as origens e religiões desta parte de Londres.

"Foi um ato deliberado de alguém que odeia muçulmanos", dizia a indiana Sweta Choudhury, 31, diante da mesquita. "Não era um homem barbado de pele escura, mas ninguém citou terrorismo até a manhã seguinte."
Diante de policiais vigiando a cena do crime, muitos mostravam vídeos em seus celulares, que flagraram o motorista quase sendo linchado pela multidão e corpos inertes no asfalto. O autor do ataque está preso, e a polícia descarta outros suspeitos.

"É chocante e assustador. Todos sentimos medo agora quando vemos uma van", disse Abdoulkadir Ahmed, 24, que imigrou para Londres da Somália ainda criança.

"Isso é vingança por tudo que está acontecendo aqui", dizia Abdullah, outro somali, que não quis ter o sobrenome publicado. "Não tem a ver só com religião. As pessoas estão enlouquecendo."

Nesse ponto, os atropelamentos perto de Westminster, em março, e na ponte de Londres, no início deste mês, e até o incêndio no Grenfell Tower, que detonou uma crise inédita no governo May, têm sido encarados pelos moradores de Finsbury como eventos orquestrados.

"Não podemos deixar que políticos usem o racismo e a islamofobia a seu favor", disse Weyman Bennett, ativista antirracismo, perto da mesquita atacada. "Deixar que pessoas vivam num prédio inseguro e morram queimadas diz muito sobre o que o governo pensa sobre elas."

Nas ruas de Finsbury, um bairro multicolorido onde crianças ruivas e negras brincam juntas enquanto mulheres de burca e judeus ortodoxos mantêm os olhos fixos no playground a duas quadras da cena do crime, a vida tentava seguir adiante.

"O clima agora é sombrio e há esse silêncio, mas as pessoas querem se manter alegres", dizia a vendedora Stephanie Matthews, caribenha de Santa Lúcia, diante das araras solitárias da loja de roupas French Kiss. "A essa altura, as lojas estariam cheias, com o rádio no último volume. Mas hoje ninguém quis ouvir música aqui."

A duas quadras, o turco Turgut Buyukbas caminhava entre mesas vazias em seu café. "É ruim para os negócios. As pessoas estão com medo", disse. "Mas é a primeira coisa assim que vejo no bairro."

Enquanto contornava as barreiras policiais tentando chegar à estação de trem, o britânico de origem turca Ismail reafirmava a ideia de que esse bairro no norte londrino, onde a gentrificação elevou os preços dos imóveis em pelo menos um terço nos últimos anos, não pode sucumbir ao terror.

"Se abrirem a mesquita hoje, eu vou estar lá. E ela vai estar mais cheia do que nunca, porque todos nós vamos estar lá."


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