Folha de S. Paulo


Atmosfera política no Reino Unido favorece a permanência na UE

Theresa May vive como uma rainha. Ela tem pouco poder efetivo ou mandato democrático. O momento de sua sucessão é o assunto preferido no Reino Unido. Em princípio, é ela que determina que os ministros mantenham seus postos. Na prática, são eles que decidem. Os defensores de May dizem que ela é uma âncora passiva de continuidade em um momento volátil, e quem a desconhece a julga com base na resposta que ela aparenta dar a acontecimentos trágicos.

Como a rainha Elizabeth 2ª depois da morte da princesa Diana, a primeira-ministra não encontrou palavras ou ações à altura do pesar nacional por aqueles que morreram no incêndio da Grenfell Tower, em Londres. O escrutínio completo a que se vê submetida 24 horas por dia não vem compensado por poderes: uma vida de rainha.

Philippe Wojazer/Reuters
Theresa May durante encontro com Emmanuel Macron, presidente da França
Theresa May durante encontro com Emmanuel Macron, presidente da França

Reduzida a um papel cerimonial por uma eleição na qual a responsabilidade pela derrota é sua, a questão agora é se a visão de May para a saída britânica da União Europeia ("brexit") será igualmente reduzida. Os defensores da saída têm a lógica fria em seu favor quando respondem que não. O fato de que as negociações tenham começado na data marcada, segunda-feira, sugere que a eleição nada mudou. Por que, então, essa sensação de que o fez?

Falta à política o rigor das ciências naturais, mas ela tem algo de física e algo de química. A física está nos fatos estruturais: maiorias parlamentares, princípios políticos declarados, processos constitucionais. Todos eles ainda apontam para uma saída britânica do mercado unificado europeu, se não também da união alfandegária. A maioria dos parlamentares foi eleita com base em plataformas eleitorais que prometiam o "brexit", por menos que isso se enquadre às suas preferências pessoais.

Há uma data, 29 de março de 2019, para que o Reino Unido conclua um acordo ou saia sem ele. Não existe exigência formal de um novo referendo para ratificar a saída. As válvulas pelas quais o Reino Unido poderia escapar à lógica impiedosa de uma saída absoluta não são muito mais largas ou numerosas do que eram antes da eleição. Aqueles que defendem a saída estão certos quanto a tudo isso.

A química da política está na atmosfera em que ela acontece. É difícil medi-la mas fácil percebê-la. Quando eventos do mundo real mudam o clima público, sabemos disso, o que por sua vez restringe ou expande aquilo que os políticos encaram como passível de afirmação ou ação. Quando um governo abandona uma proposta em questão de semanas –ou, no caso da proposta de May para a reforma da Previdência Social, em questão de dias–, isso quase nunca acontece porque seria impossível vencer a votação no Parlamento. O mais frequente é que submeter a pauta a votação deixe de ser interessante, porque a proposta perdeu apoio público e prestígio intelectual. A atmosfera mudou.

Todos nós vimos ideias transitando do impensável ao inevitável –e vice-versa–, sem desígnio político aparente. Por sete anos, políticos e comentaristas discutiram a Lei de Mandatos Fixos para o Parlamento como um monólito incontornável, esquadrinhando as barreiras formais que isso criaria para um governo em busca de uma vitória eleitoral oportunista. Mas quando May se tornou a primeira líder a testar a eficácia da lei, as barreiras todas se dissolveram. A oposição simplesmente não podia votar contra uma oportunidade de derrubar o governo. Algo assim inefável teve peso maior do que todos os processos mecânicos codificados na lei.

A eleição de 8 de junho fez diferença mínima para a física da saída britânica da União Europeia. Mas fez toda a diferença do mundo para a química. Os defensores do ficar na União Europeia, que em maio estavam silenciosos, agora falam, se bem que em código, sobre um acordo que manteria o Reino Unido aberto e competitivo.; Os jornais publicam tipologias de saída, como se fosse possível encontrar uma solução de compromisso. Antes da eleição, os partidários da saída diziam que a maioria dos eleitores estava conformada com uma saída dura, e portanto adiante da elite, quanto a isso.

Agora, o argumento em uso é outro: o de que uma saída dura ainda acontecerá porque o Parlamento, com base nos programas dos partidos sob os quais a maioria de seus integrantes foi eleita, assim disporá. É um argumento menos confiante. Evoca um advogado que tem a letra da lei a seu favor mas se preocupa que o júri não simpatize com ele. E tudo isso aconteceu antes que surgisse uma pesquisa de opinião pública registrando uma mudança de atitude com relação à saída.

Os mercados financeiros não podem se planejar para algo diáfano como um ambiente político. Estão certos em presumir uma saída brutal mesmo depois de uma eleição indecisa. Mas os investidores tendem a superestimar as realidades duras e a subestimar os fatores intangíveis. Eles subestimam aquilo a que não podem atribuir um preço. A atmosfera política parece inconfundivelmente mais hospitaleira para os partidários do "fico" do que era duas semanas atrás. Nos dois próximos anos, o mais provável é que ela melhore ainda mais, em lugar de piorar.

A tendência da inflação sugere que os eleitores estarão nervosos, então. Os termos duros de saída serão um fato, e não uma perspectiva. A não ser que uma nova eleição restaure sua posição, daqui até lá, o governo será menos, e não mais, popular.

Nessas circunstâncias, vencer em uma votação parlamentar pela saída seria ao mesmo tempo possível e impensável. O objetivo realista não é uma decisão absoluta de ficar, mas um típico e frouxo compromisso britânico. Às vezes, fatos inamovíveis não o são.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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