Folha de S. Paulo


OPINIÃO

Terror, incêndio e 'brexit' levam caos e medo à política britânica

Cada vez que Londres é atingida por mais um atentado recebo telefonemas e mensagens preocupadas de familiares e amigos no Brasil. Ontem à noite um motorista maluco gritando "quero matar muçulmanos" jogou sua van numa calçada cheia de fiéis que saíam de uma mesquita. Matou um e feriu 10 pessoas.

Dá para entender a apreensão de todos pelo que está acontecendo por aqui ultimamente. Mas é curioso pensar que nós nos interessamos muito mais a respeito de uma única vítima em Londres do que a respeito das 154 pessoas que, em média, são diariamente assassinadas no Brasil.

Como disse o historiador Yuval Noah Harari, os terroristas são atores em uma peça de teatro encenada para despertar medo e –com ele– capturar nossas mentes, forçando os governos a reagir de forma geralmente burra e desproporcional.

Harari lembra que desde o ano 2000 até hoje menos de cem pessoas morreram em atentados terroristas no Reino Unido –mas que no mesmo período 500 mil britânicos morreram vítimas de doenças causadas pela obesidade. Ele pergunta: "por que então temem mais terroristas do que bacon frito?"

'Brexit', terrorismo, xenofobia e crise de governo –tem mesmo muito medo, incertezas, cabeças quentes e sede de sangue pairando no ar de uma cidade ainda tão traumatizada pelos outros três anteriores atentados nos últimos três meses (um deles em Manchester).

Mas no meio disto tudo o incidente que mais captura o Zeitgeist deste desastrado "Verão do 'brexit'" é, sem dúvida, o incêndio de Grenfell Tower onde, na semana passada, morreram 79 pessoas [entre vítimas confirmadas e desaparecidos que já são considerados mortos].

A imagem infernal do prédio de apartamentos populares engolido pelas chamas será por muito tempo o emblema dos conflitos que ameaçam –sem exagero– incendiar o país. Quase todas as vítimas são trabalhadores de baixa renda, imigrantes e refugiados –os mesmos que, segundo a visão pró-'brexit', devem deixar o país para privilegiar o emprego da mão de obra local. Também não deve ser uma coincidência que em alguns desses prédios populares vivam jovens marginalizados que se radicalizam.

Encravada no coração do Kensington and Chelsea Council, uma das zonas mais caras da cidade, com propriedades cobiçada por oligarcas do mundo inteiro, Grenfell Tower, uma torre muito feia e triste, é um monstrengo cinza que desvaloriza o metro quadrado da região. Para "harmonizar" o visual do prédio, foram instalados numa recente reforma –que negligenciou várias normas de segurança anti-incêndio– painéis decorativos altamente inflamáveis que, segundo peritos, contribuíram para espalhar o fogo com assustadora rapidez.

Para complicar tudo e inflamar mais os ânimos, enquanto escrevo estas linhas, nesta segunda-feira (19), foram abertas em Bruxelas as negociações dos termos definitivos do divórcio do Reino Unido e da União Européia. Mas há duas semanas, desde as últimas eleições, o governo conservador não tem mais maioria no parlamento e ninguém sabe com certeza se e como esta separação será efetivada.

Como dizem os ingleses, o país está "running around like a headless chicken" (se debatendo como uma Galinha degolada). Encenando "Time to Leave", um texto recente do dramaturgo David Hare, a atriz Kristin Scott Thomas, no papel de uma infeliz dona de casa que votou pró-"brexit" vocifera um nonsense que faz todo sentido: "Votamos para sair da Europa. Mas não era isso que queríamos! Na verdade queríamos é sair da Inglaterra!".

Para ir exatamente onde?

HENRIQUE GOLDMAN é cineasta. Dirigiu, entre outros, o longa "Jean Charles" (2009)


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