Folha de S. Paulo


Esforços para resgatar migrantes tiveram consequências inesperadas

As estratégias para resgatar migrantes no mar Mediterrâneo e romper as redes de tráfico tiveram consequências mortais e inesperadas, segundo grupos de ajuda que monitoram a crise.

Elas fazem parte de um enigma absurdo: qualquer esforço para atenuar a crise dos migrantes pode retroagir, pois as redes de tráfico humano reagem criando estratégias ainda mais perigosas. Veja como essas estratégias empurraram os migrantes desesperados para situações ainda mais terríveis.

BOTES MAIS FRÁGEIS E LOTADOS

Os corpos de dez migrantes foram recuperados e pelo menos outros cem estavam desaparecidos no sábado (10) no litoral da Líbia. Oito corpos foram encontrados em um bote inflável no Mediterrâneo, em uma área traiçoeira entre a Líbia e a Itália conhecida como rota do Mediterrâneo Central. Todos os anos, grupos de ajuda patrulham a área e resgatam milhares de migrantes que correm o risco de afogamento.

O resgate de migrantes mais perto da costa líbia salvou centenas de pessoas no mar. Mas os críticos dizem que isso ofereceu um incentivo mortal para mais migrantes se arriscarem na viagem e para os traficantes lançarem mais barcos.

"Migrantes e refugiados –incentivados pelas histórias dos que já o fizeram com sucesso– tentam a perigosa travessia pois sabem que contam com ajuda humanitária para chegar à UE", disse um analista de risco da Frontex, a agência de guarda costeira e de fronteiras da União Europeia.

Os contrabandistas usam barcos frágeis e oferecem apenas combustível suficiente para chegar ao limite das águas líbias. Os pilotos podem retirar o motor e voltar à Líbia em outro barco, deixando os migrantes à deriva até que chegue ajuda.

Grupos que monitoram a crise calculam que o número de mortos será superior ao do ano passado. E isso tem acontecido todos os meses deste ano, até recentemente: uma série de afogamentos matou 700 pessoas durante três dias em maio de 2016.

Joel Millman, um porta-voz da Organização Internacional para as Migrações, advertiu para não se concluir que a situação melhorou.

"É pouco a pouco", disse ele, referindo-se ao ritmo mais lento e constante dos afogamentos. "É muito mais perigoso. Eles estão colocando as pessoas em barcos muito menores e em maior número."

Enquanto as condições adversas na Líbia e em outros países africanos tiveram maior influência em motivar os migrantes a fugir, grupos de ajuda reconheceram que suas iniciativas reforçaram o modelo de negócios do tráfico.

"Sabemos que o que fazemos não é a solução", disse Stefano Argenziano, coordenador de operações sobre migrantes da Médicos Sem Fronteiras, que resgata migrantes perto da costa líbia desde 2015. "Não é a fonte do problema, não é a solução do problema. É a pura necessidade de salvar vidas agora, quando elas estão em perigo."

Apesar das críticas, não há evidências de que atenuar os esforços de resgate reduziria as fatalidades. Depois que a UE parou de financiar o programa italiano de patrulha e resgate Mare Nostrum, em 2014, um número recorde de pessoas tentou a viagem, e um número recorde se afogou. A ONU também apoiou o aumento dos esforços de resgate, dizendo que sem eles haveria mais mortes.

DESTRUIÇÃO DE BARCOS

As autoridades começaram a destruir os barcos de madeira usados pelos contrabandistas, esperando que isso romperia as redes criminosas. Mas o efeito foi inesperado: os contrabandistas usaram cada vez mais botes de borracha baratos.

O Conselho Europeu começou a afundar os barcos em 2015 e destruiu mais de 400 desde então.

"O início das operações antitráfico acelerou o ritmo da degradação" em qualidade e segurança, disse Argenziano.

Os botes mais baratos, de 9 metros, são culpados por aumentar o número de mortes no mar porque não são adequados a longas viagens e tendem a sofrer perfurações e emborque, segundo a Agência de Refugiados da ONU.

Aproximadamente do tamanho de dois carros, os botes foram projetados para transportar cerca de 60 passageiros, mas a Frontex já viu neles mais de 150 pessoas. Esses números aumentaram desde 2015, segundo a Europol.

"Se você tiver 170 pessoas a bordo de um bote, ele pode virar em segundos", disse Izabella Cooper, uma porta-voz da Frontex. "E realmente leva segundos para as pessoas se afogarem. Muitas pessoas que estão vindo da África nunca tinham visto o mar."

Todos os lados concordam que a solução definitiva está na Líbia e na África mais profunda, onde a melhora de condições e oportunidades poderia evitar que as pessoas embarcassem para a viagem fatídica.

Os governos avaliaram estratégias que poderiam desencorajar os migrantes da empreitada, como um acordo italiano para treinar a guarda costeira da Líbia para que ela possa interceptar e resgatar os migrantes antes que atinjam águas internacionais.

"Não há dúvida de que a situação na Líbia é muito ruim para milhares e milhares de estrangeiros e migrantes", levando-os a fugir, disse Federico Soda, o diretor do escritório de coordenação para o Mediterrâneo na Organização Internacional para as Migrações.

"Realmente está na hora de começarmos a examinar algumas políticas de longo prazo", acrescentou ele. "A África e a Europa sempre serão vizinhas. O movimento de pessoas entre os dois continentes é apenas uma realidade da próxima década."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves


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