Folha de S. Paulo


opinião

Presidência de Trump resume a crise global da democracia

Mike Theiler/Xinhua
El presidente estadounidense, Donald Trump, se retira luego de emitir una declaración sobre el Acuerdo de París, en la Casa Blanca, en Washington D.C., Estados Unidos, el 1 de junio de 2017. El presidente de Estados Unidos, Donald Trump, dijo el jueves que decidió retirar a su país del Acuerdo de París, un histórico pacto global para combatir el cambio climático.
O presidente americano Donald Trump após pronunciamento sobre acordo na Casa Branca

O mundo vive uma crise global da democracia? A Presidência de Donald Trump, nos Estados Unidos, é um modelo dessa crise, e sua lógica política se assemelha à de líderes latino-americanos históricos como Juan Domingo Perón, na Argentina, ou o venezuelano Hugo Chávez.

De toda forma, nem todas as crises se explicam a partir do populismo. O contrário parece ser mais o caso na história recente de países como Brasil, Argentina ou Bolívia.

Em termos de hoje, a crise política do Brasil é muito diferente daquela da Venezuela, e a longa crise de criminalidade e violência no México é diferente da que ocorre nesses casos sul-americanos.

Entretanto, é inegável a dificuldade de se pensar a realidade atual sem o conceito de crise.

A América Latina está passando por uma crise nova e diferente das anteriores? Ou deveríamos considerar a região no quadro de uma crise global que leva os cidadãos de diferentes países a se sentirem cada vez menos representados por seus políticos?

Viver em crise não é novidade na história política latino-americana. Em ideologias políticas como o fascismo ou em sistemas políticos como as ditaduras das guerras sujas, as crises foram uma parte substancial do edifício totalitário e justificaram a repressão e a opressão.

Na democracia, a crise tampouco se mostra ausente em nossa história.

A crise é, sobretudo, uma característica da história global da democracia em geral, mas em nosso continente sempre pareceu apresentar uma agudeza até há pouco desconhecida em outras democracias do pós-guerra.
Na Argentina, depois da ditadura e a partir de 1983, a crise unifica períodos de recessão econômica com transições políticas ao populismo (a hiperinflação do final dos anos 1980, a "crise" de 2001); no Brasil, de Fernando Collor de Mello a Michel Temer, a própria Presidência se transforma no centro da crise.

CORRUPÇÃO

A crise de corrupção no Brasil tem sérias ramificações latino-americanas, não só porque o país é o mais importante da região, mas porque políticos argentinos, peruanos ou colombianos de diferentes bandeiras políticas parecem estar relacionados ao escândalo.

Esse tipo de crise é típico das democracias nas quais se percebe uma aguda falta de representação sentida por setores importantes da cidadania. Esse quadro, no qual a corrupção —e a existência de uma forte diferença entre políticos misteriosamente enriquecidos e cidadãos cada vez mais empobrecidos— faz com que o populismo encontre seu fermento e chance de êxito.

Isso não implica, é claro, que os políticos populistas estejam afastados da corrupção e da crise. O contrário representa melhor a realidade atual. A crise do populismo na Venezuela já tem vários anos, e cada dia parece aproximar o regime de Nicolás Maduro da ditadura pura e simples.

Mas no populismo essas diferenças não se apresentam como um problema.

O caso de Recep Tayyip Erdogan na Turquia também é exemplar nesse sentido. As sérias acusações de corrupção ao presidente turco e à sua família não foram um empecilho para levar seu regime a níveis de polarização e agressão que se assemelham aos da Venezuela.

Em ambos os casos, essa crise populista inclui a eliminação progressiva da principal característica do próprio populismo, a equação populista entre democracia e autoritarismo.

Quer dizer, se o populismo pode ser definido historicamente como uma forma iliberal de democracia que combina lideranças messiânicas com resultados eleitorais, nos casos da Venezuela e da Turquia os votos são cada vez menos significativos e o presidente se torna cada vez menos populista e se parece mais com um autocrata.

POLARIZAÇÃO

Esse tipo de resolução quase ditatorial da fórmula populista é excepcional.

A maior parte dos líderes populistas não escolhe a ditadura, mas todos aguçam o sentido de crise da democracia e a polarização que isso representa.

Tomemos o caso da potência global mais importante. Donald Trump é o melhor exemplo dessa situação.

Trump surge como um fenômeno de rejeição, em tom racista e autoritário, da política tradicional. Sua forma de fazer campanha enfatizando que os Estados Unidos e o próprio mundo vivem uma crise terminal que só sua liderança messiânica pode solucionar faz parte de sua prática de governo.

Cada dia há um novo escândalo e, mais importante, uma nova crise democrática no país do norte, das sérias acusações de conexões russas com a campanha e a família de Trump à demissão do diretor do FBI (polícia federal americana) devido à insistência deste em continuar investigando o presidente por esses assuntos.

Além disso, e vinculado a essa ruptura dos moldes institucionais tradicionais e aos ataques contra a independência do Poder Judiciário e outras instituições, Trump atacou visceralmente seus adversários, incluindo juízes (chegou a adotar atitudes racistas com um deles), aos mexicanos e à imprensa independente a quem apresentou como "inimigos do povo".

Muitos cidadãos americanos, acadêmicos e meios de comunicação incluídos entre eles, se perguntam como a política americana pode ter alcançado níveis tão baixos e como o contexto de crise democrática do país pode parecer tão diferente do passado recente e tão semelhante às crises típicas das democracias latino-americanas.

Alguns inclusive se perguntam se os Estados Unidos, o lugar fundacional do liberalismo, estão se convertendo hoje ao fascismo ou outras formas de governo ditatorial.

Mas a lógica política de Trump é mais populista do que fascista. O populismo é uma versão autoritária da democracia que estreita a democracia e a limita sem destruí-la, e que sempre ampliará a crise ao invés de começar a resolvê-la.

Nesse sentido, de uma perspectiva latino-americana, os Estados Unidos representam cada vez mais um modelo de passado do que uma perspectiva de futuro democrático de igualdade e com ampla participação dos cidadãos nas decisões políticas.

Trump lidera e amplifica, assim, uma crise global da democracia que é uma verdadeira fábrica de populismos.

Federico Finchelstein é professor de história na New School for Social Research, em Nova York

Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES


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