Folha de S. Paulo


Possibilidade de indiciamento de Trump divide juristas americanos

A Constituição não traz respostas a todas as perguntas. Ela inclui instruções detalhadas, por exemplo, sobre como o Congresso pode afastar um presidente que tenha cometido delitos graves. Mas não explicita se o presidente pode ser processado criminalmente enquanto isso.

A Suprema Corte nunca respondeu a essa pergunta, tampouco. Ela ouviu argumentos sobre a questão em 1974 em uma ação na qual ordenou que o presidente Richard Nixon entregasse fitas de gravações, mas não se pronunciou sobre o assunto.

Os relatos de que o presidente Donald Trump teria pedido ao então diretor do FBI James Comey que arquivasse uma investigação sobre seu ex-conselheiro de Segurança Nacional Michael Flynn levaram o presidente a ser acusado de possível obstrução de Justiça. Presume-se que isso será investigado por Robert Mueller, o ex-diretor do FBI nomeado promotor especial para investigar os vínculos entre a campanha de Trump e a Rússia.

Mas, no caso de Mueller encontrar evidências de conduta criminosa por parte de Trump, a Constituição vai permitir que ele indicie o presidente?

A visão dominante entre a maioria dos especialistas legais é que não. Eles dizem que enquanto o presidente ocupa o cargo, ele tem imunidade contra processos judiciais.

"Os redatores originais da Constituição imunizaram implicitamente o presidente em exercício contra processos por crimes ordinários", disse o professor de direito Akhil Reed Amar, da Universidade Yale.

Note-se a palavra "implicitamente". Amar reconheceu que o texto da Constituição não traz uma resposta direta à pergunta. "Isso é algo que se infere estruturalmente sobre a singularidade do próprio presidente", ele explicou.

O mais perto que a Constituição chega de tratar dessa questão é o seguinte trecho do Artigo 1º, Seção 3: "O julgamento em processos de impeachment não se estenderá além do afastamento do cargo e da desqualificação para ocupar e gozar de qualquer cargo de honra, confiança ou lucro sob os Estados Unidos; mas a parte condenada será, mesmo assim, suscetível a indiciamento, processo, julgamento e punição segundo a lei".

O que parece claro é que o presidente e outros funcionários federais podem ser processados na Justiça depois de deixarem seus cargos, e, se tiverem sido afastados após processo de impeachment, não serão protegidos pela cláusula do "double jeopardy", que impede pessoas de serem processadas e condenadas duas vezes pelo mesmo delito.

Contudo, "é discutível se a Constituição permite o indiciamento de um presidente no exercício de seu cargo", escreveu em artigo de 1998 num periódico de direito Brett M. Kavanaugh, membro da equipe de Ken Starr, o promotor independente que investigou o presidente Bill Clinton.

Kavanaugh, hoje juiz de um tribunal federal de recursos, também concluiu que o impeachment, e não um processo na Justiça, é a maneira correta de lidar com os crimes de um presidente em exercício.

O nome mais destacado que destoa da visão prevalente é o do professor de direito Eric M. Freedman, da Universidade Hofstra e autor de um artigo publicado em 1999 em um periódico de direito defendendo que presidentes em exercício possam ser criminalmente processados.

Freedman demonstrou que a questão dividiu a geração dos fundadores dos Estados Unidos e argumentou que conceder imunidade a presidentes em exercício "não condiz com a história, a estrutura e a filosofia subjacente de nosso governo, contraria os precedentes e não se justifica por considerações práticas".

Ele observou que outros altos funcionários que são sujeitos a impeachment, incluindo juízes, já foram indiciados enquanto ainda ocupavam seus cargos. Os tribunais rejeitaram o argumento de que o impeachment seria a única medida a tomar em relação a eles.

Mas Amar opinou que a situação é outra quando se trata de um presidente.

"Se você vai desfazer o que foi decidido em uma eleição nacional, o órgão que o faz deve ter um mandado nacional", ele disse. "Mesmo um processo federal só ocorreria a partir do indiciamento por um grande júri reunido em um só local."

Em 1973 o vice-presidente Spiro Agnew, diante de uma investigação por um grande júri que levaria à sua renúncia, argumentou que era imune a processo judicial enquanto estava no cargo. O impeachment seria a única opção possível, segundo ele.

O Departamento de Justiça, em parecer assinado pelo então secretário da Justiça Robert Bork, discordou. Mas, embora a questão não tivesse sido apresentada ao tribunal, Bork acrescentou que "elementos estruturais da Constituição" impossibilitavam processos judiciais contra presidentes em exercício.

Como o presidente possui o poder de controlar processos federais e perdoar delitos federais, escreveu Bork, não faria sentido permitir que ele fosse processado a não ser depois que deixasse o cargo e perdesse esses poderes. Bork se tornaria mais tarde juiz de um tribunal federal de recursos e foi indicado a juiz da Suprema Corte, mas não aprovado.

Um ano depois, o promotor especial de Watergate Leon Jaworski assumiu posição menos categórica.

"A possibilidade de um presidente em exercício ser ou não sujeito a indiciamento é uma questão substancial e em aberto", ele disse à Suprema Corte durante seu esforço bem-sucedido de ter acesso às gravações feitas pela Casa Branca que acabaram contribuindo para a renúncia de Nixon.

Em uma série de memorandos, o Escritório de Advocacia do Departamento de Justiça concluiu que indiciar um presidente no exercício de seu cargo violaria a Constituição, por prejudicar sua capacidade de exercer seu cargo. Mas esses memorandos também disseram que a resposta era uma questão de estrutura e inferência.

"Nem o texto nem a história da Constituição fornecem orientação dispositiva para determinar se um presidente pode ser indiciado ou criminalmente processado enquanto ocupa seu cargo", disse um memorando de 2000, resumindo um memorando anterior. "Portanto, ela baseou sua análise em considerações mais gerais de estrutura constitucional."

As normas do Departamento de Justiça requerem que o promotor especial Robert Mueller siga "as regras, os regulamentos, procedimentos, práticas e políticas" do departamento. Se Mueller está sujeito ao que está exposto nos memorandos, parece que ele não terá o poder de indiciar Trump, independentemente do que ele possa trazer à tona.

Mas o professor de direito Andrew Manuel Crespo, da Universidade Harvard, questiona se as normas relativas ao promotor especial devem ser lidas tão amplamente. Ele escreveu no blog de direito Take Care que essas normas "focalizam mais protocolos e procedimentos administrativos que análises, argumentos ou julgamentos legais".

Mesmo que Mueller tenha o direito de se pautar por seus próprios critérios até certo ponto, disse Amar, o processo correto para avaliar a conduta de Trump, caso se chegue a esse ponto, será aquele que é descrito detalhadamente na Constituição: o impeachment.

"Muitas das discussões e dos pareceres recentes sobre detalhes técnicos da obstrução de Justiça não vêm ao caso", ele disse. "Donald Trump será julgado pela Câmara e o Senado, que, por sua vez, são julgados no dia da eleição pela população americana em geral."

Tradução de CLARA ALLAIN


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