Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Livro sobre mulheres no nazismo é homenagem ao espírito humano

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ORG XMIT: 263101_0.tif Campo de concentração de Ravensbrück, na Alemanha, para onde testemunhas de Jeová foram levados na década de 30.
O campo de Ravensbrück, 80 km ao norte de Berlim

RAVENSBRÜCK (ótimo)
AUTORA: Sarah Helm
TRADUÇÃO: Cristina Cavalcanti
EDITORA: Record
QUANTO: R$ 109,90 (924 págs.)

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A Alemanha nazista do líder Adolf Hitler produziu dois genocídios em massa —o de judeus e o de eslavos. Judeus de todas as partes da Europa e prisioneiros de guerra soviéticos morreram aos milhões.

Os números são assustadores: quase seis milhões de judeus mortos, 27 milhões de russos e outras nacionalidades da antiga URSS, entre civis e militares. Não há números precisos ou consensuais, mas a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) —incluindo sua vertente asiática deslanchada pelo Japão— pode ter causado a morte por bomba, fome ou doença de 60 milhões em todo o mundo.

A história de um relativamente pequeno campo de prisioneiros alemão, pelo qual em seis anos passaram cerca de 130 mil mulheres, pode parecer algo pouco significativo em termos absolutos. Destas, morreram entre 30 mil a 90 mil —de novo, não há consenso sobre as estimativas. Mas os números não contam toda a história.

Ravensbrück é um dos melhores exemplos da noção nazista de que a sociedade deveria ser extirpada de pessoas "indesejáveis". O campo começou suas atividades dentro de uma lógica penal tradicional —era preciso um local apenas para as mulheres, assim como hoje todos os países costumam ter penitenciárias femininas e masculinas.

As primeiras "indesejáveis" eram alemãs ou austríacas, como prostitutas, ciganas, lésbicas, e opositoras políticas como comunistas. Com a expansão da guerra, Ravensbrück passou a receber um grupo bem internacional de mulheres —em torno de 30 países foram ali "representados". Havia polonesas —o maior contingente nacional, em torno de 40 mil—, russas, francesas, holandesas. Muitas das polonesas foram vítimas de experimentos médicos supostamente "científicos". Eram conhecidas como "coelhas".

Segundo a jornalista Sarah Helm, autora do estarrecedor "Ravensbrück: A História do Campo de Concentração Nazista para Mulheres", apenas cerca de 10% das mulheres de Ravensbrück eram judias.

Ravensbruck
Sarah Helm
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Entre as prisioneiras havia algumas "celebridades", como a comunista e judia alemã Olga Benário, mulher do líder comunista brasileiro Luís Carlos Prestes. Benário fora capturada no Brasil e enviada como "presente" para os nazistas. Uma campanha internacional pela sua libertação não funcionou e ela foi morta, mas sua filha Anita foi resgatada.

Outras prisioneiras "vips" eram Gemma La Guardia Gluck, irmã do prefeito de Nova York Fiorello La Guardia, e Geneviève De Gaulle, sobrinha do líder francês Charles De Gaule (as duas sobreviveram).

O campo teve um destino trágico nos livros de história; tornou-se pouco mais que uma nota de rodapé. Localizado a 80 km de Berlim, ficou em território administrado pelos soviéticos depois da guerra e tornado parte da Alemanha Oriental. Ravensbrück tornou-se por muitos anos um local de homenagem às prisioneiras comunistas. Só com o final da Guerra Fria sua história pôde ser melhor conhecida no lado ocidental.

Helm fez um ótimo trabalho de buscar sobreviventes e entrevistá-las. O tempo foi implacável. Uma vítima francesa, Louise Le Porz, a convidou para ficar com ela em sua casa para conversarem. E deixou uma mensagem urgente na secretária eletrônica da jornalista: "Mas você precisa se apressar. Eu tenho 93 anos".

O empenho nazista em se livrar de seres humanos "indesejáveis" coloriu toda a guerra. Mesmo com o país à beira da derrota em 1944-45, os fornos crematórios e câmaras de gás alemães não paravam de funcionar.

Ironicamente, nos últimos meses do conflito, era mais difícil conseguir sobreviver. Hitler e principalmente seu capanga Heinrich Himmler, líder da organização paramilitar SS, o maior arquiteto da "Solução Final", sabiam que seriam derrotados, e quiseram levar para o túmulo o maior número possível de "indesejáveis".

O livro é descomunal, com mais de 900 páginas. A autora aparentemente fez questão de incluir todas as histórias que conseguiu garimpar. Mais do que um relato de atrocidades, também é uma homenagem ao espírito humano em condições extremamente trágicas.

Ela procurou dar voz às prisioneiras e contar relatos de solidariedade e compaixão. Quem passava fome, mas ainda assim dividia a pouca comida, quem lutava para preservar a saúde física e mental das amigas, merece que suas vozes sejam ouvidas.


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